Cultura, política e poder

Mario Vargas Llosa recebeu a notícia de que tinha ganho o Prémio Nobel (2010) em Nova Iorque, onde se encontrava a escrever esta obra, A Civilização do Espectáculo. Trata-se de um conjunto de ensaios que, de certa forma, “respondem” a, ou complementam, ideias já formuladas em artigos publicados no jornal El País nos anos 1990 e no início do século XXI (os “antecedentes”, como os designa o autor) e que surgem aqui republicados em jeito de mote para as reflexões expressas nos textos mais recentes, onde Vargas Llosa analisa o processo de degradação do conceito de Cultura, substituído, no seu entender, pela entronização do culto do “espectáculo” dirigido para um público massificado, acrítico e obviamente, obtuso.

A ironia desta situação - o grande acontecimento mediático que é o Prémio Nobel a surgir quando o autor estava empenhado na crítica violenta do abastardamento da cultura em prol do espectáculo - faz salientar a dificuldade que existe em desmontar, analisar e repensar a perigosa e insustentável leveza da “coisa cultural” e o esforço que é necessário para regressar à ambicionada reflexão sobre a necessidade de equilíbrio entre as forças culturais, as políticas e as do poder que parecem estar, cada vez mais, em conflito aberto e acerbo.

Vargas Llosa que, para além de romancista, dramaturgo e ensaísta, é um grande jornalista, fornece uma visão do mundo que não é a de um simples ficcionista, analisando com uma certa melancolia a situação das últimas décadas no que se refere a este universo contemporâneo onde o saber, bem fundamentado e bem alicerçado na educação cuidada e na curiosidade intelectual, se tem perdido para dar lugar ao imediato, ao óbvio e a tudo o que é “fácil”.

Esta linha de pensamento não é, felizmente, original ou isolada. São muitas as vozes que se insurgem contra o primado da forma sobre o conteúdo mas o que Vargas Llosa faz - e bem - é alargar esta discussão, trazendo a terreiro os problemas relacionados com a política, as religiões, a educação e o poder, apontando as grandes falhas - ausência de criatividade, burocracia, negligência, ignorância - e o nefasto primado do capital e dos interesses financeiros, posto em prática a partir da década de 60 do século XX, e que contribuiu para destruir o que, para o autor, tinham sido os alicerces civilizacionais, edificados no século XIX. Logo no primeiro texto, Llosa traça aquilo a que chama a “metamorfose da palavra Cultura”, desde a atenção a que foi sujeita no ensaio de T.S. Eliot, Notes Towards a Definition of Culture, de 1948, até à “redefinição” de George Steiner, em Some Notes Towards the Redefinition of Culture (1971), para concluir, entre outras achegas, que a “pós-modernidade destruiu o mito de que as humanidades humanizam”.

Vargas Llosa não resiste a expressar a sua irritação por constatar que as ideias que enunciou nos seus prognósticos em relação ao futuro se revelaram correctas: na educação abandonou-se o estudo dos clássicos e o rigor na aprendizagem para privilegiar o imediatismo da imagem e a repetição de frases e ideias feitas; na saúde, apesar dos grandes progressos científicos e da esperança do prolongamento da vida, existe um retrocesso em termos de qualidade; as religiões imiscuem-se no poder do Estado, apesar da laicidade vigente nos países democráticos; as artes estão dependentes dos governos e são manipuladas pelos média, obrigando a um decréscimo de qualidade em prol das “audiências”. Insatisfeito com o rumo dos acontecimentos, o autor utiliza argumentos fortes e convincentes para expressar as suas preocupações.

Vargas Llosa tem passado por distintas e variadas fases na sua vida e as suas ideias - inteligentes, bem formuladas e combativas - têm acompanhado essas oscilações. Do comunista admirador de Fidel de Castro até ao neo-liberal que se candidatou à Presidência do Peru, em 1990, com um programa que defendia a austeridade, uma economia do mercado, as privatizações e o alargamento da propriedade privada - perdeu para Alberto Fujimori que tão pouco deixou saudades aos peruanos -, Vargas Llosa tem sido sempre uma espécie de enfant terrible das letras, permanentemente envolvido e engajado nas vicissitudes do seu e do nosso tempo, uma atitude que lhe tem valido tantas críticas quanto aplausos.

De notar que, ao longo destes textos, Vargas Llosa não consegue solucionar um dilema que permanece subjacente: será conveniente (ou desejável) que as manifestações culturais, devido à globalização e a uma série de outros factores, sigam o seu imparável caminho da democratização, banalizando-se inevitavelmente, ou deverão ser privilégio de uma elite que assim poderá manter a “pureza”, a sofisticação e a elevação necessárias para que uma civilização subsista? Llosa não é optimista: a produção massiva e o êxito comercial ganham sempre vantagem. E é com desespero que afirma: “O desaparecimento da velha cultura implicou o desaparecimento do velho conceito de valor...; [vivemos] uma mudança traumática da qual surgiu uma nova realidade na qual só subsistem os rastos daquela cultura que foi substituída.”

A questão da legitimidade do conceito de pós-modernismo que Gilles Lipovetsky discute nos seus ensaios é abordada por Vargas Llosa que, aliás, esteve a debater este e outros assuntos num programa promovido este ano pelo Instituto Cervantes, em Madrid, com o filósofo francês. Lipovetsky acredita que vivemos uma “hiper-modernidade, caracterizada pelo excesso próprio das sociedades democráticas, para as quais não existem alternativas, uma vez que o modernismo acabou e surgiu uma modernidade ditatorial, esquizofrénica, globalizada. Sem oposição, apoiada nas tecno-ciências, na democracia, nos direitos humanos e no mercado, a cultura está envolvida num processo hiperbólico em que a competição, a flexibilidade e a mobilidade são fulcrais”.

Llosa partilha esta opinião e revolta-se, afirmando com pesar, no fim do livro: “Sinto, por vezes, a incómoda sensação de que estão a fazer troça de mim quando visito galerias e museus... “. Haverá certamente quem entenda estes desabafos como um excesso de conservadorismo, a nostalgia de uma “era dourada da Cultura” - que, na realidade, nunca existiu. O que o redime e o que importa é, sem dúvida, o seu desassombro em relação a esta polémica e a sua defesa da liberdade de expressão, que advoga com arrojo e mestria.

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