A palavra em Julianna

A deusa absoluta da rarefacção pop sai momentaneamente do seu terreno eleito de abstracção feérica

Para quem está familiarizado com a música encantatória de Julianna Barwick - ouvir, ouvir e ouvir "The Magic Place" -, custa inclusivamente a crer que as suas espirais de resíduos melódicos, umas melodias de voz que se diria desprenderem-se da sua boca e avançarem lentamente pelo espaço, pudessem alguma vez deixar o seu universo protegido e sujeitarem-se à contaminação e conspurcação por terceiros. Mas a verdade é que depois de se ter cruzado com o equatoriano Helado Negro algures numa digressão deu-se uma súbita vontade de prescindir da completa autonomia.

Se para Helado Negro a mera companhia de Barwick - deusa absoluta da rarefacção pop - é por si só a maior progressão na carreira com que podia sonhar, o projecto Ombre tem como superior virtude o facto de nos mostrar a cantora a sair momentaneamente do seu terreno eleito de abstracção feérica para verdadeiras aproximações às canções mais convencionais, sem com isso se forçar a um distúrbio de personalidade múltipla. "Believe You Me" é, como tudo aquilo em que toca Julianna Barwick, uma magnífica interpelação de uma beleza transparente.

Sem qualquer plano prévio, "Believe You Me" é também o disco que foi acontecendo enquanto os dois amontoavam ideias no estúdio do equatoriano. E é capaz de nos propor objectos absolutamente inesperados lado a lado: Helado Negro a cantar com aquele belo trinado caprino que conhecemos a Devendra Banhart por cima de um teclado que se juraria ter saído de Ray Manzarek dos Doors ("Weight those words") e Barwick a trautear umas coisas levezinhas, felizes de quase infantis, imediatamente depois de "Noche brilla pt.1" nos dar um jazz suave, arrastado, idílico, como se, na verdade, o jazz tivesse sido uma invenção laboratorial da 4AD. O álbum leva Julianna a familiarizar-se minimamente com a palavra (encontram-se com decrescente timidez em "Cara falsa", "The nod" e "Noche brilla pt.2"), mas deixa-a ser puxada na direcção dos Cocteau Twins e oferece-lhe uma paleta instrumental (guitarras, electrónicas-miniatura) que habitualmente dispensa. Em cada segundo, de resto, "Believe You Me" é um disco fluido, harmonioso e aconchegante, não querendo mais do que unir dois universos sem os colocar em competição.

Excelente entretém enquanto não chega o novo álbum de Barwick, já gravado na Islândia, no estúdio dos Sigur Rós.

Sugerir correcção
Comentar