Em busca do tempo perdido

Mais do que uma saga familiar, a história dos Ephrussi é a saga da decadência da Europa e do mundo ao longo do tumultuoso século XX

No início de A Lebre de Olhos de Âmbar, Edmund de Waal tem 28 anos (nasceu em 1964 em Inglaterra) e encontra-se em Tóquio, com uma bolsa de estudo. Uma vez por semana visita o seu tio-avô Iggie, banqueiro e coleccionador de arte, homem de gosto requintado e conversador inigualável. Depois de cada agradável almoço, Iggie desfia as histórias de família e, para melhor as ilustrar, abre uma vitrina onde estão expostos os seus netsuke, pequenas e delicadas figuras naturalistas, talhadas em madeira, osso ou marfim com aplicações de âmbar ou resina, cuja função era fechar as bolsas dos quimonos masculinos.

Foi no Japão destroçado, aonde chegou logo a seguir à Segunda Guerra Mundial, que Iggie encontrou finalmente a felicidade com Jiro e recuperou as suas memórias, nas quais os netsuke desempenham um papel fundamental. É uma história com 200 anos que começa em Paris no século XIX com Charles Ephrussi, um primo do bisavô do autor. Charles pertence a uma poderosa e rica família judia e é um mondain, numa cidade esfusiante que se abre ao futuro com o traçado dos boulevards do Barão Haussmann, os cafés, os jardins, os hotéis particulares e os palacetes onde, em elegantes festas e reuniões, se cruza a fina-flor da alta finança com as mais belas mulheres, os artistas, os jornalistas e os escritores. A febre do coleccionismo atinge foros de delírio público e privado e o japonesismo é uma dessas modas incontornáveis. Charles, com os seus 40 Manets, Renoirs, Degas, Sisleys, Pissarros, director da Gazette des Beaux-Arts e mecenas generoso, adquire os primeiros netsuke e vai aumentando a colecção. Mas o prazer de acompanhar Charles pela Paris da Belle Époque - é, entre muitas outras coisas, amigo de Proust, com quem discute traduções de Ruskin, e serve de inspiração para a personagem de Charles Swann - esvai-se com a escalada de anti-semitismo, despoletada pelo célebre processo Dreyfus, em 1894, que divide a França e reaviva a memória dos antigos pogroms. Charles, ostracizado pelos artistas que ajudara, impedido de frequentar o Jockey Club e outros lugares onde anteriormente passara dias em conversas e negócios, retira-se discretamente. Em 1899 envia os netsuke para Viena, ao seu primo Viktor, como prenda de casamento com a muito jovem Emmy von Koromla.

Na Áustria, os numerosos membros dos Ephrussi prosperam, ainda. Estão longe de Odessa - embora conservem marcas russas - e do patriarca Ignace que, nos grandes armazéns ucranianos de trigo, rentes ao porto, amassou a fortuna com as suas mãos calejadas e roupas empoeiradas. Na opulenta Viena do início do século XX, onde florescem os negócios, o progresso urbano e cultural é feito à custa dos empréstimos à banca, dominada pelas famílias judias. A sociedade vive para a ostentação - para ser “vista” -, os palácios são construídos num afã renovador e não existem restrições para o uso do ouro, das jóias, para o coleccionismo de obras de arte, de livros raros, de casas, de cavalos, de tudo o que é opulento e grandioso. São também estes mesmos Ephrussi que amam a poesia, que estudam afanosamente, que cultivam as artes e as ciências, que frequentam as universidades, que sustentam escritores, pintores e artesãos.

De Waal é pródigo nas suas invocações de ambientes, de tendências - que vão da moda à política, passando pela literatura, pela filosofia e pela arte -, à medida que o Império dos Habsburgos se esboroa e a Europa se encaminha a tragédia. O aumento exponencial do ódio anti-semita enraizado ao longo de séculos, que tem os seus acessos mais brutais e devastadores no século XX, com o Holocausto, é descrito pelo autor com precisão, rigor e total ausência de sentimentalismo. Ao fim e ao cabo, o desprezo e a violência contra os judeus eram comuns na sociedade dos finais do século XIX. Renoir podia vender por bom preço os seus quadros a um connaisseur como Charles, mas isso não o impedia de vociferar contra a judiaria; Viktor, em Viena, considerava-se decididamente austríaco e contribuiu generosamente para o desenvolvimento da cidade e do país, o que de nada lhe serviu quando Hitler decretou o Anschluss e entrou triunfalmente na Áustria. Numa cena elucidativa, Viktor e o filho, Rudolfo, são presos pela Gestapo: arrancam-lhes os suspensórios, espancam-nos e proíbem-nos de se lavar ou de comer - tinham de “parecer judeus”, com ar miserável e sinistro. Esta era a imagem que Hitler queria transmitir para acirrar os ânimos e “legitimar” as perseguições e a tão desejada “arianização”.

Mais tarde, de Waal resume assim a grande mudança operada no espaço germânico: os Dichter und Denken (poetas e pensadores) são sumariamente afastados e suplantados pelos Richter und Henker (juízes e carrascos). O palácio dos Ephrussi é saqueado e depois ocupado pelos eficientes funcionários do Reich, que examinam, catalogam e confiscam, de forma a “limpar” completamente o lugar. A bela Emmy, que deslumbrara a sociedade com a sua elegância e o seu bom gosto - chegara a manter dois guarda-roupas idênticos, um em sua casa e outro na do amante -, suicida-se na casa de campo na antiga Eslováquia, em Kövecses; Viktor, já com uma idade avançada, torna-se um refugiado. Elizabeth (avó do autor), advogada e poeta, admiradora e correspondente de Rilke, casada com um holandês e já com filhos, deixa a própria família a salvo e aventura-se em Viena para resgatar o pai e os irmãos.

Ironicamente, as coisas, mesmo as mais frágeis, resistem ao tempo, ao contrário dos seres humanos, e a saga muito particular dos ambíguos netsuke, simultaneamente misteriosos, valiosos e “populares”, acompanha os ciclos de drama e grandeza de uma família, à medida que traça a trajectória das ideologias, dos extremismos, da riqueza e da decadência da Europa e do mundo.

Tal como em O Museu da Inocência, de Orhan Pamuk, também aqui os objectos são um precioso veículo para a memória, não só de uma paixão mas de todo um sentimento amoroso - por uma família, por lugares, por objectos - e de uma afirmação cultural e intelectual. De Waal é oleiro, artista, e não se considera “escritor” - vale a pena “googlar” o seu nome e examinar as belas peças de sua autoria, expostas em galerias e discriminadas em catálogos -, mas este livro de memórias, tão fortemente proustiano, (a edição francesa tem como título La Mémoire Retrouvée) é uma obra exemplar de referência histórica, social e artística. Os netsuke, agora na posse do autor, continuam a seguir o seu destino, nestes tempos conturbados.

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