A filha do bispo

Um thriller de espionagem, uma lição de História que pode servir para os nossos dias. E talvez uma história de amor, esse sentimento ou “estado” que se assemelha a um jogo de espionagem

Serena, a heroína do mais recente romance do britânico Ian McEwan, é filha de um bispo da Igreja Anglicana - cresceu “à sombra da catedral” - licenciada em Matemática por Cambridge, leitora voraz e hábil jogadora de xadrez (a chamada “abertura do Bispo” é conhecida e analisada desde o século XV), o que explica, em parte, o seu recrutamento para o MI5, um dos departamentos dos Serviços Secretos ingleses. Em Mel (a não totalmente satisfatória, mas compreensível, tradução do original Sweet Tooth, um termo cuja ambiguidade se esbate em português), ela é uma mulher que evoca, retrospectivamente, os seus tempos de jovem conservadora nos anos 1970, quando se afasta de casa e mergulha na habitual rotina da vida estudantil, com sexo, bebida e política, e, mais tarde, inicia a sua vida de trabalho numa Londres em plena revolução de costumes e de ideias. Tony Canning, um carismático professor casado e mais velho, toma-a como amante (“eu era bela, nessa altura”, reconhece Serena) e trata de a preparar, qual Pigmaleão, para um futuro nos serviços de espionagem.

A primeira “aula” de Tony a Serena, dada ao ar livre, no jardim da casa onde se encontram secretamente, é dedicada ao tema da permanente tentativa, desde o século XVI, de obtenção de equilíbrio, no poder: “Tony insistia que um equilíbrio entre nações constituía a base de um sistema internacional legal de diplomacia pacífica. Era vital que as nações se controlassem mutuamente.”

Está-se em 1972 e, na Grã-Bretanha de todas as tenções da Guerra-Fria, os conservadores temem uma escalada do comunismo. A leitura aplicada de Solzhenitsyn, por parte de Serena, vai ao encontro das intenções de Canning que, com a sua estranha cicatriz e pele acinzentada, a vai instruindo nos prazeres e nos deveres em doses semelhantes, mandando-a ler a obra de Churchill e os editoriais dos jornais: “O Reino Unido tinha sucumbido... a um frenesi de akrasia - que era, como Tony me recordou, o termo grego que significava a acção contrária ao bom senso...Mas não havia bom senso, não havia nada contra que agir. Toda a gente tinha enlouquecido, era o que todos diziam. O termo arcaico ''contenda'' era largamente utilizado naqueles tempos tumultuosos, com inflação que provocava greves, com acordos salariais que provocavam inflação, com almoços bem regados de administradores broncos, sindicatos sedentos de sangue e com ambições insurreccionais, um governo fraco, crise energética e cortes de electricidade, skinheads, ruas sujas, The Troubles, bombas nucleares. Decadência, corrupção, declínio, uma ineficácia e um apocalipse entorpecentes...” (Pág. 36)

É neste cenário como pano de fundo que Serena, depois de um Verão idílico - leituras, vinhos requintados, sestas e pratos gourmet - é súbita e brutalmente abandonada por Canning. Apesar de magoada com a traição e perturbada pelo mistério do seu desaparecimento, aceita o trabalho pouco estimulante no MI5, onde tudo é abstracto e distante e ela se desespera com a rotina. Por vezes os funcionários são “convidados” a ouvir palestras sobre geopolítica e geoestratégia e, principalmente, sobre os perigos do comunismo, de como a URSS estaria apostada em dominar o mundo. As vigorosas lições sobre o materialismo dialéctico encontram eco na alma sofrida de Serena, que se aplica intensamente na compreensão da sua missão, convencida que é seu dever, como cidadã britânica, lutar contra a barbárie que se avizinha. Vale-lhe a sua única amiga, Shirley Schilling, que, estranhamente, não parece levar as coisas tão a sério e até lhe confessa que gostou de estar na RDA, numa viagem de intercâmbio. Por essa altura, a obsessão com o IRA já está bem desenvolvida e há as Brigadas Vermelhas, o Grupo Baader-Meinhof, os Tupamaros e outros movimentos idênticos na América do Sul, o Symbionese Liberation Army nos EUA, todos aqueles que, no jargão do MI5, são “esses niilistas e narcisistas sedentos de sangue que têm boas relações transfronteiriças e não tardarão a representar uma ameaça interna”.

Com a sua linguagem fluida McEwan vai narrando acontecimentos que se inscrevem nesse tempo histórico tão recente, tal como fez, por exemplo, em Cães Negros e Sábado. Os seus protagonistas intervêm - e são um produto de - nesse mesmo continuum civilizacional, o que permite ao autor incursões magistrais na filosofia, na política, na psicologia e, principalmente, na literatura e na articulação social, utilizando um vago pendor irónico que o aproxima da sua compatriota Zadie Smith.

À semelhança de Expiação, Mel é um romance histórico em que o autor questiona continuamente as ingerências da realidade na ficção e vice-versa. Serena, leitora insaciável, aprende que Jacqueline Susann não chega aos calcanhares de Jane Austen e afirma convictamente que “...não (a) impressionam aqueles escritores (que proliferam entre a América do Norte e do Sul) que se infiltram nas páginas que escrevem como parte do elenco, decididos a recordar ao pobre leitor que todas as personagens, e até eles próprios, são puras invenções.” (pág. 87). Contrariando a sua heroína, é o próprio McEwan que, em determinada altura, se “infiltra” na narrativa, sob o nome de Tom Haley, o escritor que irá transformar-se na peça fundamental da trama. Depois de uma travessia do deserto nas catacumbas do MI5, Serena é convidada a participar numa missão - nome de código MEL - que visa atrair intelectuais de esquerda, não decididamente pró-soviéticos, e aliciá-los no sentido de se tornarem mais alinhados com uma nova ordem. É confrontada com um teste em que lhe pedem para escalonar por ordem de importância Kingsley Amis, William Golding e David Storey, George Orwell é mencionado com uma insinuação de que fora “ajudado” pelo Departamento de Informação (DPI) a quem forneceu uma célebre lista de agentes soviéticos e McEwan aproveita para referir o estatuto do pessoal feminino dos Serviços Secretos, tratado com paternalismo e bem abaixo do masculino. Serena, que é obviamente bonita, serve de isco para toda esta operação onde a “gulodice” (sweet tooth) de alguns deverá ser explorada até ao limite. De notar a menção ao escritor Angus Wilson, decifrador de códigos durante a guerra e um dos “famosos homossexuais” que, aqui, se insurge valentemente contra os (fictícios?) chefes de Serena, quando este o tentam aliciar para a operação “Mel”.

Serena tem apenas que estudar a obra de Haley e propor-lhe ser o fiel depositário de uma Bolsa, instituída por uma Fundação, Bolsa essa que garantirá o seu sustento. A contrapartida - escrever - é um presente envenenado, uma vez que Tom será vigiado e discretamente levado a atenuar, ou mesmo a alterar, a sua ideologia política. Serena é incumbida de comentar-lhe o trabalho - McEwan atribui-lhe a autoria de alguns dos seus próprios textos de juventude, tenuemente disfarçados - mas, como seria de esperar, a jovem agente apaixona-se pelo escritor e a história sofre novos e constantes reviravoltas, impossíveis de desvendar nestas linhas, mas que constituem uma espécie de visão desfocada do passado do próprio McEwan.

Na deliberada confusão e cruzamento entre factos e personagens reais e a mais pura ficção, Haley encontra-se com Ian Hamilton (da New Review) e com Tom Maschler, o editor da Cape, e não será de espantar que o livro seja dedicado a Cristopher Hitchens, que morreu em Dezembro de 2011 e cujas opiniões controversas e equivalente brilhantismo discursivo parecem estar reflectidas, a par e passo, neste romance subtilmente autobiográfico que segue o exemplo de A Viúva Grávida do (também amigo) Martin Amis e acompanha a tendência de outros escritores da geração de McEwan como Salman Rushdie, cujas memórias acabam de ser publicadas, em Portugal.

Dito isto, poucos romancistas serão tão ardilosos na construção de tramas quanto Ian McEwan. É com aparente simplicidade que arrasta o leitor de logro em logro, de artimanha em artimanha, de ilusão em ilusão, de armadilha em armadilha, num jogo só comparável à cena na sala de espelhos no filme A Dama de Xangai, de, e com, Orson Welles. Aliás, McEwan vai buscar ao género do cinema noir alguns dos seus truques mais conhecidos e basta recordar Amesterdão, que lhe valeu o Booker de 1998, para reconhecer a fórmula utilizada pelo escritor para captar uma atmosfera de permanente ameaça que se desenrola e se insinua na vida comum, marca bem reconhecível da cinematografia de, por exemplo, Alfred Hitchcock.

A solução das múltiplas “adivinhas” só se revela mesmo no final e McEwan mantém a trama firmemente equacionada nas premissas da cena política permanentemente movediça e contraditória da segunda metade do século XX, enquanto explora as fraquezas humanas e as terríveis consequências de opções e de actos, tanto ditados pela razão como pela paixão. No entanto, Mel é, também, para além de um thriller de espionagem, uma verdadeira lição de História que pode servir de aviso para os nossos dias, quando os velhíssimos terrores dos anos 70 se materializam novamente, com redobrada intensidade: a crise social, os radicalismos e extremismos políticos e religiosos e a sua pior consequência, o terrorismo, a escalada do nuclear, a crise do petróleo e a instabilidade no Médio-Oriente, a causa Palestiniana, as greves e manifestações menos pacíficas são temas que, infelizmente, continuam a fazer a abertura dos telejornais.

Talvez - e com McEwan estamos sempre no território das (im)probabilidades - talvez Mel seja também uma história de amor, esse sentimento ou “estado” que se assemelha a um jogo de espionagem, que passa constantemente pelo crivo da desconfiança, da ilusão e da perda e que pode falhar a qualquer instante graças ao mais pequeno erro. No final, ficam as interrogações: poderá a traição de Serena ser perdoada? Será Haley, comprometido pelas somas que recebe e pela ajuda na sua carreira, ingénuo ou venal? O seu romance distópico ( baseado no conto de McEwan, Dois Fragmentos, da colectânea Entre os Lençóis, de 1978) ganhará o Prémio Austen? Os papéis que cada interveniente desempenha ficam permanentemente invertidos e sinistramente desfocados e tudo o resto, o desabar de uma época, a aproximação do “thatcherismo” com as suas devastadoras consequências e a desastrosa e catastrófica antecipação do século XXI, está delineado com todo o brilhantismo, nitidez e rigor.

Sugerir correcção
Comentar