Tempest

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Quando em 2006 Bob Dylan lançou "Modern Times" o mundo consagrou-o como o muito esperado regresso à grande forma que tardava em voltar. O mundo estava distraído, como costuma estar em relação ao sr D: Bob tinha editado "Time Out of Mind" em 1997 e "Love and Theft" em 2001, ambos extraordinários, sendo que o primeiro é (muito possivelmente) o melhor da carreira do homem que escreveu algumas das mais belas entradas do glossário do folclore americano.

Mas "Modern Times" vinha na sequência de uma autobiografia ("Chronicles") e um documentário realizado por Scorsese ("No Direction Home"), pelo que era tempo de Dylan outra vez - pese embora "Modern Times", vincado na música dos anos 1940, pré-rock'n'roll, que o bardo cresceu a ouvir, ser mais fraco que os antecessores. Logo de seguida voltou a não ser tempo de Dylan e "Together Through Life" passou anónimo; sendo que o mesmo vai acontecer a este soberbo "Tempest". Ao contrário dos discos anteriores, não há um “som” definido. "Tempest" abre com aquele jazz acelerado que marcou "Modern Times" e à segunda a slide-guitar começa a botar show: "Soon after midnight", uma progressão abluesada com a slide guitar a dar ares de country, é um parente afastado da lenta sedução que os Cowboy Junkies manejavam em "Trinity Sessions". Mas quando pensamos que este trote dorido será o tom de "Tempest", vem a espantosa "Narrow way", que está noutro universo sónico: o blues eléctrico à antiga, com a slide a rasgar e o violino a atear chamas pela pentatónica acima. "Long and wasted years" é nova derivação bluesy, mas mais apostada na melodia (a figura central é belíssima). Em cada um destes temas Dylan paira em pura suspensão emocional, narrando desgraça após desgraça (a quantidade de mortes em "Tempest" é inaudita), dialogando com senhoritas desaparecidas, fazendo propostas indecentes, remoendo culpas (em "Roll on John" quase parece dizer que ele é que merecia a bala que deu cabo de Lennon). A com a voz suja, a dicção arrastada, o distanciamento emocional de crooner, tudo contribui para a imagem de um homem que que já viu tudo e não gostou de quase nada. Na estupenda "Pay in blood" o sr D rosna como um Deus que já só tem desprezo pelos humanos, e a voz soa a bagaço pela manhã. E em cada um destes temas a slide-guitar é a estrela, deslizando pela pauta com a beleza lânguida de um pôr-de-sol redentor - é ela que traz a beleza que equilibra a devastação da voz e das palavras do sr D, que em "Scarlett Town" vai para territórios que não lhe esperávamos (aquele banjo, aquelas descidas com o violino angustiado lembram os "16 Horsepower"). A folk, a country, o blues, o rockabilly, o cajun: isto é o sr D a resgatar todas as músicas pré-rock que ouviu quando era um miúdo e a injectar-lhes a sua visão do mundo, não muito distante do Velho Testamento. “Hear me howlin'', hear me moun, I pay in blood, but not my own”, canta o sr D. Canta com tanta convicção que no fim de "Tempest" estamos prontos a construir um bunker, comprar armas, derrubar governos.

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