Dificuldades no campo da honra

Uma sátira tão confusa e errática como a própria Segunda Guerra Mundial, com embarques e desembarques, debandadas e deserções

A carnificina, o caos e a desumanidade da guerra têm sido temas privilegiados da Literatura, desde a Ilíada até aos dias de hoje, mas a sua abordagem tem conhecido diversas formas, da mais pessoal à mais técnica e analítica. Grandes romances como Guerra e Paz, de Tolstói (sobre as Guerras Napoleónicas), A Cartuxa de Parma, de Stendhal (Batalha de Waterloo) e A Insígnia Vermelha da Coragem, de Stephen Crane (Guerra Civil americana), conseguem abarcar todas essas facetas; depois, as duas Grandes Guerras do século XX, com um nível de destruição nunca antes visto, ganharam um espaço peculiar e muito diversificado na história da Literatura.

Para os que têm uma visão “heróica” da Segunda Guerra Mundial, principalmente no que diz respeito à acção das Forças Armadas britânicas, a leitura de Oficiais e Cavalheiros (1955), de Evelyn Waugh, será certamente um choque. Qualquer guerra é sempre absurda, mas o escritor inglês, que participou activamente nas manobras bélicas que aqui descreve, eleva a sua hilariante e desarmante crítica a um patamar só alcançado por Joseph Heller em Catch 22, cuja escrita, curiosamente, foi iniciada também nos anos 1950 (embora o livro só tenha sido publicado em 1961). Waugh afasta-se decisivamente do idealismo da poesia de, por exemplo, Rudyard Kipling e Rupert Brooke, que exaltaram fervorosamente a “grandeza” dos combatentes e das batalha em que a “honra” e a “glória” eram ponto de ordem (Kipling arrependeu-se desta sua posição, depois da morte do filho), concentrando-se, tal como Heller, no absurdo da burocracia militar, na falta de preparação de muitos líderes, na banalidade da morte e no caos que se instala num sistema que, à partida, se pretende rigoroso e eficaz.

A figura central de Oficiais e Cavalheiros - segundo livro da trilogia Sword of Honor - é Guy Crouchback o aristocrático e católico herdeiro de uma família arruinada. Quando o encontramos, neste romance, já ele conseguiu ingressar na fictícia Companhia dos Alabardeiros, pouco reconhecida entre as forças de Sua Majestade mas que, por circunstâncias diversas e pouco claras, acaba por ser enquadrada numa missão no Mediterrâneo a partir do Egipto. Outros personagens que transitam do anterior Homens em Armas são Tommy Blackhouse, o comandante do destacamento, que casou com a anterior mulher de Crouchback, e Ivor Claire, outro companheiro de armas e um suposto exemplo do perfeito cavalheirismo britânico que acaba por se render às tácticas mais ou menos ilícitas do Coronel Jumbo Trotter, um oficial mais velho e mais hábil no que diz respeito à forma de tirar partido das amenidades que o Exército pode conceder a quem souber “mexer-se”.

A primeira operação dos Alabardeiros envolve um desembarque desastroso e inconsequente mas que, devido a uma série de mal-entendidos e a coberto da escuridão, acaba por se tornar num sucesso de propaganda, graças ao furriel Ludovic (baseado em Robert Maxwell que, mais tarde, se tornou membro do Parlamento e um conhecido magnata da comunicação social), olhado com desconfiança pelos seus superiores por “suspeita de escrever poesia” e de manter um diário potencialmente perigoso, pelo risco de cair nas mãos de inimigos. Na realidade, Ludovic - uma espécie de deus ex-machina - gosta de registar as suas erráticas deambulações filosóficas e pensées, que, mais tarde, “fizeram as delícias da crítica”.

Baseando-se em personagens reais e na sua própria experiência numa das missões mais letais para as forças aliadas - foi em Creta que a Luftwaffe experimentou o seu poder aéreo, arrasando praticamente toda a ilha -, Waugh constrói uma história feita de sketches rápidos, tão confusos e erráticos como a própria guerra, com embarques e desembarques, fugas e retornos, debandadas e dispersão dos exércitos. O título, Oficiais e Cavalheiros, marca, evidentemente, o contraste entre as magníficas qualidades que caracterizam um “oficial” e um “cavalheiro” e a forma como estes se comportam na realidade: os “oficiais” não pensam, não organizam nem comandam e, na sua qualidade de “cavalheiros”, perdem rapidamente as boas maneiras quando são atacados e sofrem condições extremamente adversas. Na retaguarda, em Londres, as ordens e as tácticas não são melhores: as operações militares estão sempre a falhar por razões imprevisíveis como o mau tempo, o defeituoso funcionamento do material, a falta de comunicações, as doenças, as deserções - a Senhora Stitch é uma conhecida anfitriã de Alexandria, que aparece em vários livros de Waugh e desempenha um papel obscuro na ajuda aos desertores -, as falhas na cadeia de comando, o desconhecimento do terreno ou, simplesmente, a indiferença e o mais puro desalento. Estes “heróis” perdem a sua aura para se revelarem simples seres humanos, sujeitos às emoções mais banais, num confronto cujo absurdo é magistralmente aproveitado pelo autor, que aqui, como fez notar o crítico George McCartney, mostra que pouco lhe interessava corrigir comportamentos pouco éticos, à maneira dos satiristas tradicionais, mas antes atacar com vigor “as certezas culturais e metafísicas do seu tempo”.

Pena é que esta edição portuguesa surja isolada. Para aqueles que não leram a trilogia completa, o acompanhamento da acção cria algumas dificuldades.

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