Maria da Conceição Moredo, a falsa herdeira da Bic

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Ilustração: Susa Monteiro

Tem doçura na voz. Isso ajuda-a a arrastar homens para os mundos que será capaz de inventar. Nesses mundos, Maria da Conceição é Marie, ex-mulher de um milionário moribundo, que até pode ser um herdeiro do império Bic. No final deste mês, ouvirá uma sentença. Lá para Setembro, começa a ser julgada noutro tribunal

Aquela mulher não lhe largava o pensamento. Foi comprar um jornal, a ver se o desviava para o mundo dos outros, para o mundo de todos, para onde fosse.

Era tarde. Já só havia o Jornal de Notícias. Levou-o, apesar de não estar habituado àquele título. Sentou-se a lê-lo. Leu tudo, até os classificados.

O seu olhar deteve-se num anúncio de letra miudinha: "Senhora de 51 anos, divorciada, curso superior, sem filhos, alegre, meiga, charmosa, vida estável, deseja conhecer cavalheiro dos 55 aos 75 anos, sem filhos, sem grandes vícios, vida socio-económica estável, culto, espírito largo, que adore a cidade e o campo, o tête-à-tête terno ao calor de uma lareira, sensível à bondade, à alegria, à partilha.

Assunto sério." E se respondesse? Julgara ter encontrado a mulher da sua vida e tudo se desfizera como um carro que embate a uma velocidade estonteante. Como é que se sobrevive a um desastre daqueles? Custava-lhe tanto cruzar-se com ela na rua ou no café. Como reagiria quando a visse nos braços de outro? Preferia sair dali. Sim, bom era mudar-se. Sabia lá para onde. Qualquer onde que não aquele onde.

Escreveu uma carta. Meteu-a num envelope. "Que estás a fazer? Isto é apenas um anúncio de jornal!" Meteu o envelope numa pasta azul. Decorridos 15 dias, encontrou-o ao procurar uns papéis. "Por que não? Precisas de uma mulher que te faça acreditar que és capaz de sobreviver a uma grande paixão, de voltar a ser quem eras antes do desastre. O que tens a perder?" Chamava-se Maria João. Preferia que a tratassem por Marie, como se habituara em França. E tinha tanta doçura na voz.

Conheceram-se no Tia Alice, em Fátima. O restaurante combina o rústico e o refinado numa cave com paredes de pedra, tecto de traves de madeira, louça pintada à mão, toalhas e guardanapos de linho. Seria talvez um pouco como ela, Marie, uma mulher oriunda do Mogadouro que se fizera em Paris.

Ela entrou com Maria José, a sua "secretária particular". Riram-se enquanto conversaram sobre as suas vidas e saborearam as iguarias de Alice Marto. Marie apressou-se a pagar o jantar. Quis passar pelo santuário. Havia pouco, fora 13 de Outubro de 2010 e houvera a tradicional enchente alusiva à última aparição da Virgem de Fátima aos pastorinhos. Agora, o silêncio trazido pela noite.

Marie orou. Acendeu uma vela. Era tarde. Já passava das 23h. Dormiram mesmo ali, cada um num quarto de um hotel cujo nome se perdeu na memória de Vítor. Ela pagou a estadia.

Ele ainda se terá incomodado com a prontidão com que ela saldava as contas. Maria José tê-lo-á sossegado: "A Maria João é detentora de meios económicos fora do comum, por isso não estranhe se ela não o deixar pagar. Ela é uma pessoa muito generosa. É uma grande líder. Se souber conviver com a liderança dela, poderá desfrutar de um ser humano com excelente coração." O homem magro, de baixa estatura, cabelos grisalhos, óculos de aros finos, estaria extasiado.

"Era um orgulho estar com ela." Marie sabia vestir-se. Extravasava delicadeza nos gestos, na voz. Seria artista, engenheira civil, arquitecta, empresária. Teria sido casada com Éric Bich, filho de Marcel Bich, o barão franco-italiano que há 60 anos aperfeiçoou a caneta inventada pelo húngaro Laszlo Biro, com uma patente própria: a ponta Bic.

Manteria uma óptima relação com o ex-marido, com quem teria tido uma filha, Sandrine. Ele estaria em Paris, doente, em frase terminal. E ela e a filha seriam as grandes herdeiras do império Bic, assente nas canetas, dos isqueiros, das máquinas de barbear que se vulgarizaram em todo o planeta.

Nas conversas daquele dia e dos dias seguintes abundariam referências à fortuna da mulher do anúncio número 886. Seria dona de uma casa na Quinta do Lago, que pertencera ao piloto Ayrton Senna, de outra na Foz do Douro, de outra em Hendaye Beach, em França, de um apartamento em Biarritz, também em França.

Seria ainda proprietária de um hotel em Chamonix, nos Alpes suíços, de um hotel na Régua, de uma quinta em Sintra, de outra em Castelo de Paiva... Perante aquilo, Vítor revelou-se proprietário de uma fábrica de móveis em Paços de Ferreira, à venda por 325 mil euros, e de uma loja em Abrantes, recheada de mobiliário. Tinha uma empresa de construção. Desde que se divorciara, vivia num pequeno apartamento.

Estava a construir uma casa, numa zona mais pacata, para partilhar com a mulher que o arrebatara e que ele perdera.

Não quisera conhecer Marie pela fortuna, nem se sentia diminuído por ela. Fora casado com uma administrativa de um centro de saúde e perdera-se de amores por uma ajudante de lar. Dizia-lhe: "Nunca procurei uma mulher rica. Se chegou a minha vez de ter uma relação com uma mulher com mais do que eu, isso não me preocupa. Só não quero ficar com menos do que tinha antes de te conhecer." Num instante, terá ficado a saber que a sua Marie, afinal, se debateria com um grave problema.

Com receio de perder dinheiro, transferira grande parte do que tinha numa conta aberta na unidade do BPN nas Ilhas Caimão para Portugal. Perante tão avultada e injustificada transferência, o fisco ter-lhe-ia congelado as contas. Precisava que lhe emprestasse 14 mil euros para concluir um negócio.

Seria 20 de Outubro. Conheciam-se havia cinco dias. Já viviam juntos num casarão da Avenida da Boavista, quase a chegar ao Parque da Cidade do Porto. Vítor terá ido buscar o dinheiro ao seu cofre. Volvidos dois dias, ela ter-lhe-á pedido outros 25 mil e ele terá ido a um balcão do BES levantá-los.

Que negócios eram estes? Traria barras de ouro da família Bich, desenharia jóias e mandá-las-ia fazer no Porto. Teria, de resto, de ir já à Suíça levar jóias a clientes libaneses.

Viajaram de carro, para evitar o controlo de fronteiras. Embora tivesse ali três apartamentos, ela preferia ficar num hotel. Os termómetros marcavam temperaturas demasiado negativas. O aquecimento não fora ligado.

Andaria preocupada. Não queria arriscar novos problemas por avultados e injustificados depósitos. Ter-lhe-á pedido que fosse com ela abrir duas contas em Lausanne. Quando o negócio estivesse concluído, o dinheiro dividir-se-ia entre a conta dela e a dele. Entretanto, para fechar outro negócio, ter-lhe-á pedido que fosse a uma conta, que sabia que ele tinha na Suíça, levantar 125 mil euros. Para o sossegar, terá pegado numa folha branca e escrito que lhe devia dez milhões.

Não regressaram para o casarão da Boavista, que afinal é propriedade dos pais de Maria José. Instalaram-se num apartamento, na rua Alves Redol, que afinal é residência de Maria José. Foi ali que Vítor conheceu Sandrine, a quem pouco depois terá dado os pêsames pela morte de Éric Bich. E que diversas vezes terá visto Simão, o fiel empregado, que afinal é o verdadeiro pai de Sandrine.

Três meses terão bastado para Vítor lhe passar dinheiro e bens no valor de 606.495 euros.

No último mês, cada vez que se sentava num banco de testemunhas das Varas Criminais do Porto, parecia mais pequeno. "Sinto até alguma vergonha por me ter deixado enganar desta forma." Era "um convencido". Sempre se vira como um homem inteligente, talhado para os negócios. "Aquela mulher tem um poder de sedução, um dom natural... Era um orgulho estar ao lado dela." Não se pôs no tribunal a falar da vida sexual, que com ela seria extraordinária. Aquilo ia muito além da pele. "Ela punha-me tão à vontade. Perguntava-me: 'Queres que ligue à Sandrine e que lhe peça para trazer um cheque do pai?' Eu dizia-lhe logo: 'Ó Marie, não sejas palerma. Temos tempo.' Elas são profissionais. Aquilo não era um engate de beira de estrada. Aquilo estava bem montado."

Faziam vida de filme. Circulavam em carros de alta cilindrada - Mercedes, Porsche, Jaguar - que ele julgaria serem dela, mas que eram alugados.

A namorada estava sempre pronta a ajudá-lo. Contratou logo quem lhe limpasse a fábrica desactivada.

Ter-lhe-á oferecido pedra para as portas e para as janelas da casa que ele estava a construir. Por uns dias de relaxe no hotel Aquapura Douro Valley, pagou 2966 euros.

Ouvi-la-ia ter grandes discussões, por telefone, com Bruno Bich - a quem Marcel passou as rédeas dos negócios em 1993, um ano antes de morrer. Nunca terá ido à Internet fazer uma pesquisa sobre a família que tanto a ocupava. Não imaginava que Bruno, o presidente da Bic, fosse apenas um dos 11 filhos de Marcel. Nem que Jean Claude, o irmão de Marcel, tivesse morrido em 1996.

Tantas vezes a terá ouvido trocar impressões com o "tio Claude", que até já lhe mandaria cumprimentos. E dar instruções a Janne, que seria secretária dos Bich há 17 anos e que estaria do seu lado na luta contra Bruno. Terá chegado a falar com ela por telefone. Acredita agora que quem lhe respondia era a própria Marie, disfarçando a voz com um perfeito sotaque brasileiro.

Não desconfiava? "Não desconfiava. Quando se desconfia da mulher com quem se está, já está tudo estragado." Esteve para conhecer o "tio Claude" em Dezembro. Agora, pergunta-se: quem desempenharia esse papel? E admite: talvez ninguém.

Talvez aquela segunda viagem à Suíça fosse apenas uma estratégia para lhe tirar o resto do dinheiro que depositara lá, a pensar na crise que adivinhava cá.

Instalaram-se no Best Western Eurotel Riviera, bem no centro de Montreux, de frente para o lago Genebra. Mara, a filha de Vítor, ligou-lhe. Faltava dinheiro para pagar a Segurança Social dos funcionários da empresa de construção. Marie tranquilizou-o, pedindo a Maria José que depositasse 5500 euros nessa conta já a descoberto. Assunto resolvido. Não se falava mais nisso.

Paris cobrira-se de neve. O tráfego aéreo tornara-se incerto. O "tio" viria de carro. Duas colaboradoras seguiriam à frente, ele e Janne atrás. Pela auto-estrada, tardariam umas seis horas. Nunca chegaram àquele lugar, a Norte protegido por colinas e a Sul exposto ao lago que lhe ameniza o clima.

Primeiro, sem que se percebesse como, o "tio Claude" teria apanhado uma diarreia tão grande que nem se aguentara até uma estação de serviço. Janne conduzira-o a uma urgência hospitalar. Depois, uma das colaboradoras, Véronique, teria sido apanhada a falar ao telemóvel enquanto conduzia. A polícia tê-la-ia mandado encostar. O que traziam na bagageira? Roupas, sapatos, nada, teria respondido Véronique, sem saber que Janne lá teria metido uma mala com ouro e dinheiro para Marie. Esquadra, claro. Impunha-se pagar uma caução de 350 mil euros para libertar as raparigas.

O "tio" não teria tanto dinheiro disponível. Precisaria de 125 mil euros. Marie não podia deixá-lo desamparado. Podia Vítor valer-lhe? Ordenaria já ao BPN que lhe fizesse uma transferência para a sua conta - o seu dinheiro já fora desbloqueado. Mandaria, de imediato, um fax para o banco.

Às vezes, até lhe passam umas ideias obtusas pela cabeça. "Será que ela punha alguma coisa na água? Ela não bebia da mesma garrafa, a menos que a garrafa tivesse acabado de ser aberta." Mas isso implicaria estar com um efeito permanente de uma droga qualquer. Existirá uma droga assim? Será a isto que alguns chamam feitiço? De que vale pensar nisso, agora? "Estar com ela era gratificante." Os filhos, que rejeitaram a namorada anterior, gostavam dela. Era muita atenta aos detalhes. Não perdia uma oportunidade de os encantar. Oferecera uma máquina de filmar profissional ao seu filho, Mauro. "Eu não tinha Natal há seis anos. Eu tive Natal por ela. Ela cozinhou tudo o que comemos no Natal." Passaram a passagem de ano no Mogadouro.

Elisabeth, a irmã do meio de Marie, organiza sempre um jantar naquela noite. Faz uma mesa comprida ao longo de três paredes de uma sala do restaurante O Cantinho, que tem mesmo ao lado de casa, na rua dos Frades, e a clientela vai-se sentando, conforme vai chegando.

Nem ali, ao pé das duas irmãs ou da mãe, que já conta 82 anos, Vítor lhe percebia a suposta farsa? "Na aldeia, ela transfigurava-se." Ali, em frente a uma lareira, a mulher de traços finos tornava-se igual às outras, mais conformes à rudeza de Trás-os-Montes. "Ainda a admirava mais por isso."

Cândida, empregada na loja de Vítor, é que terá descoberto. Como ela, quando lá fora escolher o que queria, se dissera tão entendida na arte de decoração, pusera-se a vasculhar a net e encontrara títulos como este: "Burlas milionárias em artigos de decoração" (Jornal de Notícias, 2008/9/15).

Ou este: "'Engenheira' não fez burlas só na área da decoração" (Jornal de Notícias, 22/09/2008). Ou este: "Burlona de Mogadouro apanhada pela PJ" (Rádio Brigantia, 3/08/2009).

Aquilo não era bonito, não senhora. Marie e Maria José teriam burlado diversos lojistas do Porto e de Vila Nova de Gaia. Uma delas dizia que a "engenheira" "metia as pessoas no coração" e que a cúmplice também tinha "enorme capacidade de comunicação". Faria os primeiros pagamentos em dinheiro, falando de uma fortuna presa na Suíça. Socorria-se depois de cheques sem cobertura.

Isso fora em 2008. Em 2009, estourara o escândalo da agência Moredo Prestige. Dezenas de pessoas protestaram à porta do escritório na rua de Santa Catarina, no Porto. Ter-lhes-ão pago 192 euros, convencidas de que iriam trabalhar para a construção civil em Angola por cinco mil euros por mês.

Cândida falou com a filha dele, Mara. Como é que se conta a alguém que a pessoa com quem dorme não é a pessoa com quem dorme? Até tinham medo da reacção dele.

Quantas vezes já o tinham ouvido dizer que a linha que separa o amor e o ódio é ténue? Andaram dois ou três dias a matutar naquilo até decidirem: seria Cândida a contar-lhe. Ele acreditou de imediato. Fez-se um clique.

Ficou furioso. Como fora aquilo acontecer? Era burro ou quê? Entregara-lhe o dinheiro que tinha cá e o dinheiro que pusera na Suíça.

Sim, pusera dinheiro na Suíça - "O que está a acontecer agora, eu já previa. Por mais que queira, o Governo não consegue fazer crescer a economia. Porquê? Porque as pessoas que têm dinheiro esconderam-no. O dinheiro não desapareceu, está escondido. As pessoas só o voltam a pôr cá fora quando houver algumas garantias de que não ficam sem ele." Era tão precavido, tão cioso do seu dinheiro, e entregara até o recheio da loja - "Sete cargas, sete!" E uma carrinha.

No banco dos réus da terceira vara criminal, senta-se Marie, que afinal se chama Maria da Conceição.

Está com 54 anos. Usa o cabelo curtinho, castanho, muito esticado, todo penteado para trás. Ao lado dela, senta-se a amiga, Maria José, uns meses mais nova, mais corpulenta, de traços um tanto grosseiros, com o cabelo louro, cortado às camadas, a descer-lhe nas costas largas.

Poucas horas o ex-marido, Simão, se sentou no mesmo banco corrido. O homem tem problemas cardíacos. A filha levou-o para as urgências do Hospital de São João. A advogada de defesa apresentou-o como "um homem das obras", no sentido de simplório, sem astúcia para perceber uma burla qualificada, muito menos para assumir, de forma consciente, um papel nela. E à filha como uma engenheira civil dedicadíssima ao trabalho, alheia a qualquer eventual trapalhada da mãe.

Quando Vítor terminou o seu longíssimo depoimento, Sandrine pediu para falar. Mesmo quando se sentava no corredor à espera da chamada para cada sessão, a rapariga, cabelos lisos a fazer uma linha oblíqua sobre os ombros, mantinha um ar angelical, apreensivo.

Acentuava-o ao dirigir-se, equilibrada nos seus sapatos de salto discreto, ao colectivo de juízes presidido por Manuela Trocado.

- Conheceu o Sr. Vítor? - perguntou-lhe a juíza-presidente.

- Cruzei-me com ele duas vezes. O que falei com ele foi: olá, bom-dia, boa-tarde, está sol.

- Não se demorou com ele? - Não.

- Nunca se fez passar por herdeira de uma família rica? - Não.

- Das canetas Bic? - Não.

- Ou ouviu dizer que era filha? - Não.

Os pais tinham-se separado durante a sua infância. Fora criada pelo pai - primeiro com a ajuda da tia Elisabeth, depois com a ajuda da avó materna. E o pai era aquele homem que se sabia: só fizera a 4.ª classe, trabalhara mais de 20 anos na mesma empresa de construção, esforçara-se para lhe dar um curso.

- A minha mãe... eu visitava... ela trabalhava em grandes casas. Também na Bic, é verdade.

- Lá em França? - Sim. O meu pai levava-me a visitá-la. Ia num sábado, passava a tarde com ela.

- Trabalhava em quê? - Ela decorava. Imagine que eles tinham um jantar. Ela decorava a mesa toda. Ela punha as coisas direitinhas. Pelo menos, era assim que eu via as coisas.

- Nunca ficou em casa da sua mãe? - Não. Ia visitá-la ao trabalho.

- Ela vivia nas casas? - Não sei.

- Com 12 ou 13 anos, não sabia? - Não, porque a minha relação com ela é essa.

Esta conversa, tal como uma posterior, esbarrou muitas vezes em "não", "não sei", "não sou capaz de responder". A juíza-presidente seguiu diversos caminhos, na tentativa de chegar aonde mais lhe interessava.

- Qual a sua relação com a sua mãe? - A mesma que tinha antes. Vou visitá-la, almoçar com ela, jantar com ela.

- Tem uma relação distante com a sua mãe? - Sim, uma relação distante. Quer dizer, eu gosto dela, é minha mãe, mas... No fundo, cresci sozinha.

(...) - Como explica que a sua mãe vivesse tão bem, com famílias milionárias, e não tivesse ficado consigo? - Sou a menina dos olhos do meu pai. Se calhar, quando se separaram, quis ficar comigo.

- Por que não tem uma relação próxima com a sua mãe? - Tenho uma relação próxima.

- Por que não passava um fim-de-semana com ela? - Ela viajava sempre.

- Para onde? - Pelo mundo.

- Nunca se casou com ninguém da família Bic? - Casar, casar não. Assim de viver, não sei responder.

Parecia haver muros em todas as direcções. Já a perder a paciência, a juíza-presidente apontou o ponto fulcral. No mundo inventado que chegara à barra do tribunal, Sandrine seria dona de uma empresa de construção com mais de 200 trabalhadores. No início de 2011, teria telefonado à mãe, perturbadíssima.

Descobrira que o namorado a traía com a arquitecta, despedira-a e estava a ser vítima de chantagem. A despedida exigia-lhe 29 mil euros, sob pena de revelar segredos relacionados com os seus negócios.

- Há aqui uma questão relativa a 29 mil euros que teriam sido obtidos com a sua colaboração.

- Peço desculpa? - Na acusação. O senhor Vítor fala em 29 mil euros que teriam sido canalizados para si. O que sabe sobre isto? - Nada.

O irmão, Pedro, instrutor de condução, um ano mais velho, também ali esteve, só que do lado esquerdo, o das testemunhas. Era como se ao duplicar o depoimento da irmã, o homem, de uma simplicidade desarmante, o reforçasse.

- O pai não será o mesmo? - perguntoulhe a advogada.

- Não sei até hoje quem é o meu pai. Sei quem é a minha mãe biológica, mas quem me criou foi a minha avó.

- Ainda hoje, falecido o seu avô, é com ela que vive? - É.

- Onde? - Na aldeia de Sampaio, no Mogadouro, numa casa simples, sem grandes luxos.

- Conheceu o senhor Vítor? - Assim, pelo nome... - A pessoa que nos faz estar em tribunal.

Volte-se para trás. Conhece-o? - Conheço.

- Alguma vez esteve com ele em casa da sua avó? - Ele esteve lá uma vez ou duas, mas o resto da família... Vítor revolta-se, ao ouvi-los. "Estive tantas vezes com eles! O Pierre até dorme numa cama que saiu da minha loja." A mãe ficou impávida. Era como se nada daquilo a surpreendesse, embora lhe doesse.

E doía muito, a fazer fé no momento em que quis dizer, com voz de choro, que uma vez encontrara numa caixa um conjunto de cartas da filha com comentários "horríveis" a seu respeito.

Não é engenheira, nem arquitecta. Nunca frequentou o ensino superior. Fez o 6.º no Mogadouro. Terá estado três anos num colégio de freiras, em Bragança, antes de se mudar para França, onde os pais já estavam. Trabalhou em agências de organização de eventos, que a colocaram dentro das casas de algumas das mais abastadas famílias de França, como seria a família Bich.

Ter-se-á envolvido com Éric Bich. A irmã, Elisabeth, diz que guarda memórias desse tempo. Terá chegado a ficar com ela num casarão da Foz do Douro. Seria bem mais velho. Iria com ela à aldeia e sentar-se-ia à mesa com a mãe e com as irmãs dela, sem qualquer altivez. Seria 1998, ano em que Maria regressou a Portugal. Andariam cá e lá, até se terem separado, sabia lá ela porquê.

"Coisas lá deles, não é?" Entre Novembro de 1999 e Abril de 2000, Maria viveu com António, um construtor do Mogadouro. Ao depor, durante a segunda sessão do julgamento, ele atrapalhou-se, irritou-se, elevou a voz. E ela soltou um grito, como se quisesse calá-lo. A juíza-presidente até lhe pediu que sossegasse ou saísse da sala.

É um daqueles homens de pele rosada e acentuado sotaque transmontano. Conta uma história parecida à que ali se estava a contar.

Toda a gente, lá na terra, já vira o pai de Sandrine. Ninguém, lá na terra, sabia quem era o pai de Pedro, que a família trata por Pierre.

E um segredo desses aguça a curiosidade de muita gente numa terra pequena como o Mogadouro. A avó dele, às vezes, até se irrita com isso: "É meu!" Maria ter-lhe-ia dito que o rapaz seria filho de Éric Bich, que estaria doente, em fase terminal. E, em nome da herança, ter-lhe-ia ficado com dinheiro e com bens, "com quase tudo". Ele apresentou queixa. Por ela, Maria passou quatro meses no Estabelecimento Prisional de Tires, em Cascais. Desistiu da queixa em troca de 75 mil euros - 25 mil nunca terão sido pagos. "Comprei um contentor e fui para lá viver." Vítor encontrou-o. E encontrou outros.

Reuniram-se cinco, num almoço, em Espinho. Combinaram depor nos vários julgamentos para que se prove que Maria da Conceição e Maria José fazem da burla "um modo de vida".

Vítor está convicto disso: "Ela aproveita-se de pessoas que estão em situação de carência afectiva. Ela dá-se ao luxo... Ela viveu comigo, mas alguns nem lhe tocam." Só a Maurício, Vítor não pediu que viesse depor. O idoso, que já foi um dos maiores empresários de artigos religiosos do país, está demasiado debilitado.

A história remonta a 2001, estava Maurício sem mulher há uns três anos. Tomado pela solidão, entusiasmou-se com um anúncio da agência Tête-a-Tête. Deslocou-se ao Porto para conversar com a responsável. Maria terá logo percebido quem seria a parceira ideal para ele: uma mulher, de 34 anos, "muito rica, filha de um embaixador, que residia nos Estados Unidos da América, vivia do seu património, tinha prédios na América, em França, na Suíça e em Portugal".

Tomado pelo desejo, entrou numa troca de cartas com promessas de um casamento católico que durasse 100 anos. De rompante, a noiva adoeceu. Precisava de dinheiro para recuperar a saúde. Mesmo doente, os telefonemas da suposta noiva, com sotaque brasileiro, seriam intensos. Na ânsia de a ajudar, ele fazia-lhe cada vez mais transferências. E com isso terá perdido 1.089.586 euros.

Maria foi condenada pelo Tribunal de Ourém a seis anos de prisão efectiva e a filha a dois de prisão suspensa, mas o julgamento acabou por ser anulado por instâncias superiores.

Terá havido pelo menos uma alteração dos factos não comunicada, o que obrigará a começar tudo de novo.

Precisa de tempo quem quiser perguntar a Agostinho, um médicopediatra que vai já nos 79 anos, como é possível alguém deixar-se levar assim, ao ponto de perder tudo, ou quase - como ele, que terá perdido mais de um milhão de euros. A resposta parece-lhe estar, em parte, na infância.

Perdeu o colo materno aos três anos. A mãe passava grandes temporadas fechada, no quarto, "a cuspir sangue". Ele aproximava-se da porta e ouvia-a: "Não entres." A tuberculose levou-a, tinha ele dez anos e a irmã sete. O pai disse-lhes: "Nunca vos darei uma madrasta." "Nunca nos deu uma madrasta, mas também nunca quis viver connosco." Ainda se lembra de se encostar à avó e de a ouvir dizer: "Este menino, se não tiver quem lhe dê carinho, vai ser um desgraçado." Não se casou por amor. "Casei-me de empurrado." Sentiu-se forçado a unir-se a uma rapariga que a irmã convidara para madrinha do filho. Já tinha três filhos quando percebeu que não havia volta a dar àquilo. Pediu-lhe o divórcio. "Ela atirou-me com os filhos para a frente e eu recuei. Fiz uma jura: quando os meus filhos estivessem lançados na vida, libertava-me." Cumpriu-a, estavam já na universidade.

Não desistiu do amor. A vida ensinou-lhe que há coisas das quais não se pode desistir, por mais que se possam ir perdendo, por vezes com grande desgosto. Meteu um anúncio no Jornal de Notícias. E, dois ou três meses depois, quando já perdera o ímpeto, apareceu-lhe Maria. Seria Maio de 2009.

Combinaram almoçar no centro de Espinho - está habituado a comer por ali, perto do apartamento que o pai lhe deixou e do consultório a partir do qual acompanhou o crescimento de tanta vizinhança. Maria era uma "engenheira rica", 20 anos mais nova.

Divorciara-se de um coleccionador de arte, que vivia nos Estados Unidos. Também tinha um "enorme gosto por obras de arte, incluindo antiga". Aquilo era música para os ouvidos de Agostinho, apaixonado por artes e antiguidades. Orgulhava-se muito de uma imagem de Santa Luzia que tinha no móvel da entrada.

E falou nela com tanto entusiasmo que Maria terá querido vê-la. "Levou as mãos à cabeça: 'Ai, doutor, que maravilha! Quanto quer pela imagem?' Eu disse-lhe: 'Esta imagem vale um apartamento.' Ela perguntou-me: 'Quanto quer por ela?' E eu falei-lhe em 60 ou 70 mil euros, já nem sei. E ela: 'Temos de conversar.'" Um dia, ter-lhe-á aparecido com a "irmã", Maria José. Viram tudo o que Agostinho acumulara dentro daquela casa, graças aos muitos anos que dedicara um dia por semana a frequentar feiras de velharias, lojas de antiguidades, restauradores. E terá sido o delírio: "Ai doutor, quanto vale esta?" Zulmiro, o amigo, bem lhe dizia: "Cuidado.

Acho que é de mais." Mas Agostinho não lhe dava ouvidos. Os seus amigos foram sempre homens mais velhos. A doença ou a idade já os levara quase todos. Restava-lhe aquele. "Se fosse um dos outros, eu teria acatado, mas era o Zulmiro. O Zulmiro era mais velho, mas era contínuo, tinha menos cultura, embora tivesse muitas capacidades." Falaria muitas vezes ao telefone com Maria e outras do seu círculo. Era como se estivessem sempre com ele, atentas aos seus ais.

Tudo aquilo seria emocionalmente muito absorvente.

Nunca pensou meter-se em apuros.

Os cheques que passou, fiando-se que seriam usados apenas como caução, ainda o perseguem.

A filha deixou de falar com ele. Só no mês passado, voltou a receber a pensão por inteiro - durante meses recebeu menos um terço. Há uma semana, foi a Leiria buscar o seu carro, que por causa dos tais cheques fora objecto de penhora. Que pode fazer agora, se não contar esta história nos sucessivos julgamentos? O próximo está marcado para Setembro, no Tribunal de Vila Nova de Gaia. Atrás dele está Manuel, um electricista, de 74 anos, que respondeu a um anúncio de dama em busca de cavalheiro. Tê-las-á conhecido a 12 de Setembro de 2010. Maria José tê-lo-á recebido no casarão da Boavista: "A senhora vem já." A "herdeira de milhões" terá tomado uma bebida com ele, junto à piscina. Precisaria de "um homem não para trabalhar, mas para dormir com ela, para lhe dar carinho".

Nunca dormiu com ela, mas ter-lhe-á entregue todas as suas economias. Primeiro, 13.800, depois seis mil. Ainda pediu um empréstimo de 25 mil euros (receberia o dobro mal o dinheiro de Maria estivesse desbloqueado), mas o banco negou-lho. Tê-lo-ão então convencido a vender o carro, que era conduzido pela filha. E a entregar fios, brincos e pulseiras de ouro da família para limpar.

Nem sabe o rol de problemas que lhe terão semeado, ao convencê-lo a criar a empresa Diferente & Singular. Há dois cheques, de vinte mil euros cada, sem cobertura. Há a compra de uma carrinha por 12.500 euros - a tal que Vítor vendeu a Marie, que até está com ele mas que ele não pode tocar. E uma conta de telemóvel de 2.103 euros.

Quando Vítor o encontrou, julgava-o um criminoso: respondia pela empresa que lhe comprara a carrinha e não a pagara. Depois, concluiu: à volta da sua história, teriam acontecido muitas histórias. Um exemplo: os dois cheques sem cobertura que Manuel passou foram entregues na Galeria Vera Lúcia, no Centro Comercial Brasília, no Porto. Maria José terá comprado com eles um quadro de Mário Bismarck, uma serigrafia de Paula Rego, quatro quadros de Rita Pessanha. Quatro destas obras estão nas mãos de Vítor. Chegaramlhe na carrinha que levara os móveis para o Porto e para a Lousada.

No fim do desfile, Maria pediu a palavra.

Levantou-se. Aproximou-se do microfone. E, na sua voz sensual, comentou: - Tenho pouco crédito na minha palavra, mas vou tentar... Perdeu-se um bocado. Encheu muitas respostas de nada. Parecia que a qualquer momento iria agarrar-se à suposta depressão que, segundo o seu psicólogo, "a levaria a megalomania e a dramatizações delirantes da história de vida, com constantes confabulações, fuga de ideias e alucinações auditivas".

Mas não. Nem valeria a pena. O Instituto de Medicina Legal já afastara a hipótese de desligamento da realidade. A perita que a analisara não detectara "qualquer patologia psiquiátrica ou anomalia psíquica que a tivesse impedido de avaliar a ilicitude dos seus actos".

- Não sou isso que dizem. Como é que se diz em português? Não sou essa serpente, que rouba e vai para a toca. Visto um vestido da Zara, ponho uns adereços e pensam que ando com luxo.

(...) - É verdade que colocou um anúncio no JN? - Não. Quem colocou o anúncio foi a Maria José. Eu coloquei anúncios para troca e venda de recheios.

- Ela é que lhe apresentou o senhor Vítor? - Apresentou-me num restaurante. Já tinha lá estado. A Maria José entrou primeiro. Nós vínhamos do Barreiro. Ela disse: 'Vou apresentar-te alguém." - Apresentou-se como Maria João? - Apresentei-me como Maria João. É o meu nome artístico. Estava a falar com um desconhecido.

- A senhora tirou algum curso de engenharia? - Não, só de vitrinismo.

- Não é engenheira? - Não, as pessoas é que me chamam engenheira por andar lá no meio.

- E a Maria José apresentou-se como sua secretária? - Não sei.

- À frente da senhora? - Não sei. Estava distraída. Falo sempre da Maria José como solicitadora.

(...) - A senhora alguma vez disse que era casada com alguém do império Bic? - Isso é um mal que apareceu em 1999.

Eu... Eu não ando de país em país, de homem em homem, de hotel em hotel. Estive quatro meses em Tires. Estive quatro anos com apresentações periódicas. Vai começar tudo outra vez? - Eu só fiz uma pergunta. Alguma vez se apresentou como sendo herdeira do império Bic? - Não, nunca. Eu não uso essas palavras.

Eu não as uso para sacar dinheiro, não. Há outros caminhos.

(...) - É verdade que pedia dinheiro ao senhor Vítor? - Não, nunca na vida. Eu é que fui umas mãos abertas em tudo.

- A senhora disse ao senhor Vítor que era uma pessoa com muito dinheiro? - Doutora. Juíza, desculpe. Eu entrei com sentimentos. Ele era uma pessoa bem humorada, bem disposta. Uma mulher precisa de uma força, de um amigo. O dinheiro não me move, o dinheiro nunca me fez feliz.

(...) - Foram duas vezes à Suíça? - Fomos.

- A senhora é que pagou a despesa? - Eu paguei a despesa.

- O senhor Vítor não lhe emprestou dinheiro na Suíça? - Não. Não houve empréstimos. Houve levantamentos.

Eu acompanhei dois levantamentos.

Ele foi depositar a outro banco.

Não explicou com que dinheiro pagava tantas despesas - os carros, os hotéis, as viagens, as prendas. Entre 2007 e 2008, nem entregou declaração de rendimentos. A mesma tese foi apresentada por Maria José, que declarou rendimentos em 2007 de 20.322 euros e em 2008 de 17.874.

Maria José achava Vítor insuportável. "Não era homem de pagar nem um café". Maria gastara milhares de euros por mês para sustentar a relação com ele. Ele não a libertaria um minuto - "Até quando ia à casa de banho tinha de deixar a porta aberta". Todos os levantamentos que fizera teriam sido motivados pelo anseio de levar o seu dinheiro para a Suíça e para Espanha. E todo este processo não seria mais do que uma forma dele se vingar de Maria, que terminara a relação com ele.

A defesa não convenceu o procurador. Para que iria levar o homem o seu dinheiro, dentro de malas, de carro, para a Espanha ou para a Suíça, "correndo o risco de ser parado e de ficar sem ele"? Para que iria levantar o dinheiro que tinham num banco na Suíça para pôr noutro banco na Suíça? A advogada de defesa insistiu na ideia que tentou passar ao longo de todo o julgamento: aquele processo era uma cópia do processo do Mogadouro; aqueles homens que ali desfilaram a desempenhar o papel de vítimas tinham combinado tudo durante o tal almoço, com os respectivos advogados, em Espinho.

Vítor até saiu da sala. Não suportava ouvi-la acusá-lo de fazer parte de "um bando de malfeitores".

Esteve ali durante as quatro sessões do julgamento. Há-de estar ali a ouvir a leitura da sentença, no final deste mês. Ela não. Ela, a mulher do anúncio 886, pediu para não estar.

Só olhou para ele duas vezes. Ele agradece-lhe por isso. "Gostei dela. Acredito que ela também gostou de mim. Há coisas que não se conseguem fingir. Mas ela sabe separar as coisas..." Enquanto a sentença não chega, lá no Mogadouro, a irmã do meio agarra-se a uma dúvida: "Fala-se em milhões, como eu falo em tostões. Onde estão esses milhões? Onde estão?!" A Polícia Judiciária não os encontrou nas mais de 40 contas bancárias que os arguidos têm em Portugal, muitas sem qualquer movimento.

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