O Diabo, um amigo que vos quer mal

Dominik Moll mostra-se incapaz de dar substâncias às forças invisíveis que dominam as personagens desta aventura religiosa

Ambrosio (Vincent Cassel) é um monge, um super-monge, a estrela do seu convento. Vem gente de toda a Espanha para ouvir as suas prédicas, e é tão íntegro, tão devoto, tão bem parecido que os seus colegas monges têm por ele, diz a narração, “respeito e temor”. Na cena de abertura, quando Ambrosio ouve as confissões de um violador de crianças (que saberemos depois ser o Diabo encarnado), diz-lhe muito pragmaticamente: “Satanás só tem o poder que o deixarmos ter”.


A história de O Monge, adaptada de uma novela do século XVIII (The Monk, de Matthew Lewis, que nos anos 70 Buñuel adaptou num argumento que não chegou a filmar - foi Ado Kyrou quem o fez), conta como Ambrosio inadvertidamente abriu o flanco, e conferiu ao Diabo muito mais poder do que seria ajuizado conceder-lhe.

Perante esta espécie de action movie monástico, recheado de teologia bubble gum, com muitos crimes e algum sexo (para convento de Capuchinhos, o número de mulheres jovens e bonitas que por ali rondam é inusitado), o espectador passa metade do tempo na esperança de que Dominik Moll seja capaz de tirar o melhor partido da tensão entre a gravidade religiosa dos acontecimentos e dos dilemas das personagens, e o estilo despachado, quase casual, com que eles são filmados.

A meio do filme, a esperança começa a esvair-se - percebe-se que O Monge nunca ultrapassará uma tepidez de telefilme, com uma mise en scène neutra e indistinta. Moll tinha-nos dado um muito estimável "Harry, um Amigo que vos Quer Bem", exercício de tortura psicológica do espectador que não desmerecia a sua hitchcockiana inspiração. Aqui, Moll é incapaz de dar substância às forças invisíveis que animam e dominam as personagens - quando, exactamente, é que Ambrosio se torna possuído, obcecado, prisioneiro das mais maldosas inclinações? Ninguém sabe, a transformação da personagem é completamente falhada, e mesmo se Vincent Cassel não é o mais expressivo actor do mundo, seria injusto atribuir-lhe a culpa toda.

Para invocar Deus e o Diabo é preciso mais do que apenas mencioná-los; para materializar o Bem e o Mal é preciso ter unhas para dar carne ao invisível. O Monge não tem, e fica condenado a ser chocho até ao fim. Ocorre-nos que, nos dias de hoje, Bruno Dumont talvez seja o único cineasta consistentemente capaz de filmar aventuras religiosas. Alegremo-nos, o seu Hors Satan tem estreia anunciada para muito breve.

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