Juventude que marcha

Um filme que se vê como recordações da infância a que o tempo conferiu, ao que era mau, uma lembrança ainda pior, e ao que era bom fê-lo parecer ainda melhor

Na Internet encontra-se um artigo, de autor americano, que discute os “elementos de estética fascista” na obra de Wes Anderson. Não diz que ele é fascista nem que os seus filmes são fascistas, mas não resiste totalmente à tentação de insinuar que alguns desses elementos surgem de maneira insidiosa, como um tique que Anderson não controlasse. Não é um mau artigo (nunca seria, como exercício intelectual: trata-se basicamente de aplicar uma coisa que Susan Sontag escreveu, o seu ensaio dos anos 70, Fascinating Fascism, a uma coisa que ela não viu feita por alguém que certamente leu o que ela escreveu, The Life Aquatic of Steve Zissou, estreado na América três dias antes da morte de Sontag - neste contexto, extraordinária coincidência...), embora a nosso ver erre as conclusões, talvez por défice de sentido de humor e/ou escassez de memórias familiares (é de famílias que querem ser como organizações, e de organizações que querem ser como famílias, na função e na disfunção, que os filmes de Anderson falam, os “elementos de estética fascista” são os instrumentos para essa tragicomédia repetida a cada filme, e só lhe interessam como tal). Mas bom, não estamos aqui para comentar o artigo (o leitor interessado digite “wes anderson + fascist aesthetics” no Google, vai lá dar de certeza), apenas para referir que ele se tornou algo famoso, e certamente chegou ao conhecimento de Wes Anderson.


E como Hitchcock, que nos anos 50, depois de ler o que os “Cahiers” escreviam dele, lhes ofereceu um filme (“ah, querem ''falsos culpados''? tomem lá The Wrong Man), Anderson parece ter pensado: “ah, querem elementos de estética fascista? Tomem lá Moonrise Kingdom”. A bem dizer, será menos uma questão de estética propriamente dita, e mais a ver com a ressonância e as alusões das figuras que Anderson cria. Há uma organização, uma organização de facto (os Escuteiros - a escolha deve ter sido a dedo...), e uma família. A organização é completamente militarística, e a dado passo, a partir do aparecimento de Harvey Keitel (com um bigode igual ao de John Wayne no Rio Grande), transforma-se na Cavalaria dos westerns fordianos. A família também encontrou uma maneira “militar” de funcionar: a mãe (Frances McDormand) anda por casa a dar ordens de megafone. Os miúdos da organização e os miúdos da família são reflexos uns dos outros: criaturinhas desalmadas, resultantes de um cruzamento entre os hooligans da Laranja Mecânica e a Juventude Hitleriana. Excepto dois: um rapaz escuteiro, órfão hiperactivo, tão empreendedor como desajustado (primo do protagonista de Rushmore, portanto), e a filha mais velha, adolescente sonhadora e, consequentemente, problemática. Detestam, cada um, o meio em que vivem, e um dia fogem mesmo - é a história de Moonrise Kingdom. O que é novo em Anderson: até aqui, as suas personagens respondiam à opressão e à disfunção pela insistência, quando a família e o grupo não funcionavam a missão era remendá-los, aproximá-los de uma ideia virtuosa; aqui a saída é exactamente isso, uma saída, e para o par de miúdos, são os outros que são condenados a ficar.

Os dois miúdos são dados como perdidos, há uma tempestade e tudo, mas quem está verdadeiramente perdido são os adultos. Há Edward Norton, chefe dos escuteiros, no papel que tipicamente seria interpretado por Owen Wilson, o do organizador sempre a ser traído pela realidade; Bill Murray, o pai da rapariga, mais deprimido do que nunca (“para de ter penade ti próprio” - (silêncio) - “porquê?”), e McDormand, a mãe, que tem um affair com o polícia local, Bruce Willis, triste e apático como no Protegido de Shyamalan, que só a farda associa ao action hero reaganista que ele foi nos anos 80; e também Tilda Swinton, a enviada da assistência social, que se comporta com uma rigidez digna de uma representante de um estado totalitário. Os miúdos ainda têm uma chance, mas nas costas da história deles Moonrise Kingdom é uma tragicomédia da vida adulta.

Hiperactivo, cada vez mais, é Anderson. O filme tem um ritmo velocíssimo, as cenas, por vezes muito curtas, quase se encavalitam umas nas outras; a quantidade de “informação visual” a cada plano chega a ser impressionante, o que diz tanto sobre o rigor da composição de cada enquadramento como sobre o trabalho de “animação” do mundo e do décor (que, diríamos, lembra mais Fantastic Mr Fox do que qualquer outro dos filmes de “acção real” de Anderson). Em época em que a austeridade estética adquiriu uma espécie de valor ético, é fácil imaginar que esta exibição de opulência não caia bem - mas Anderson tem tanta munição que nem se importa de a desperdiçar (como quando cita, na caminhada dos escuteiros pelo bosque, uma célebre sequência de The Big Parade, o King Vidor mudo que não deverá ser reconhecível pela esmagadora maioria dos espectadores contemporâneos). Chamem-lhe bricoleur, construtor de legos, coisas do género, que isso não muda o essencial: Moonrise Kingdom, para lá de ter coração e alma para dar e vender, mostra um estilo - uma maneira de narrar, de construir personagens, de desmontar e remontar o mundo - que afinou o seu carácter idiossincrático num ponto próximo do limite. O regresso a Bottle Rocket é impossível, não se pede a ninguém que faça do sétimo ou oitavo filme outra primeira obra. Mas até esta espécie de longing pelo “início” de Wes Anderson, antes de tudo se ter tornado demasiado “composto” e “complicado”, que detectamos numa volta pelas críticas online, tem algo a ver com Moonrise Kingdom: é um filme que se vê como se contasse uma história através do filtro de uma memória distorcida, como recordações da infância a que o tempo conferiu, ao que era mau, uma lembrança ainda pior, e ao que era bom fê-lo parecer ainda melhor. Belíssimo, evidentemente.

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