Jack White nunca tocará "Blunderbuss" como o gravou

Depois de ver o "show" de Jack White, no Colbert Report, e subsequente "show" "AMEX Unstaged" não consigo falar de outra coisa

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Declaração de interesses: o autor deste texto tem, apesar da terrível crise instalada na Europa, desperdiçado milhares de euros em vinis da editora Third Man Records, sendo esta propriedade de Jack White, autor de "Blunderbuss", aqui comentado. Sendo assim, existe a possibilidade de alguns eventuais aspetos menos bons do álbum não serem analisados com o mesmo detalhe dos mais que evidentes numerosos aspectos fabulosos do mesmo.

Sou um fã de primeiras intenções. Mostra o carácter nos nossos interlocutores, que assim se tornam mais afirmativos, ao dizerem ao que vinham e porque mudaram de assunto na viagem. E, no caso deste texto, a primeira intenção era escrever sobre o fabuloso e ultimamente ultra-popular "Burger & Lobster", de Clarges Street, em Mayfar. Agora que simplesmente não se pode ir lá sem reservar uma mesa com 1 mês de antecedência, já posso deixar de o considerar o meu poiso secreto para refeições "posh-trash" e divulgar a sua existência aos comuns mortais que estejam a pensar ir a Londres daqui a mais de 30 dias.

Mas depois de ver o "show" de Jack White, no Colbert Report de quinta-Feira, dia 26, e subsequente "show" "AMEX Unstaged" na sexta... honestamente não consigo falar de outra coisa, como um crente desejando espalhar a boa nova aos infiéis. E isto depois de já estar mais do que treinado nas músicas do novo "Blunderbuss" desde meados do mês passado, altura em que foi colocado em "streaming" pela Third Man Records, seguida da compra de vinil e CD da praxe a semana passada na HMV de Trocadero, a dos pobres entenda-se, por oposição à mais socialmente aceitável, localizada em Oxford Street.

White fez dois alinhamentos para o concerto de ... e não se tratou apenas de dois alinhamentos em termos de discos ou temas... ele tocou as duas partes do concerto com... e isto de certeza vai para o livro do "Guiness"... DUAS bandas diferentes.

Uma "all-girls band", The Peacocks, já conhecida do video de "Love Interruption", e outra totalmente masculina: Los Buzzardos, que apareceu a fazer aquela "jam" no Colbert Report. 

Mais uma vez, a timidez do miúdo de Detroit, disfarçada por entre uma parafernália de músicos que estão a tocar vários instrumentos e que no álbum têm a mão dele. E isto leva-me a outro grande esforço individual do rock, o album de estreia dos Foo Fighters, em que Grohl tocava tudo excepto a muito esquecida contribuição de Greg Dulli da sua guitarra na faixa... lá está... a muito esquecida, portanto irrelevante...

Mas, voltando a "Blunderbuss". Quando "Two Against One" apareceu no album "Rome", quase todos apontaram essa faixa como uma divergência temporária sem sentido que não teria reflexão no álbum a solo da "better half" dos White Stripes. Afinal esse era um esforço de dois deuses actuais da música eletrónica e Jack tinha caído ali para mostrar trabalho e passar algum tempo por perto de Norah Jones, não para divulgar os seus trunfos para "Blunderbuss". Mas lá está, Jack preparou no concerto essa faixa atípica com nada mais nada menos que o primeiro "single" deste novo esforço e com nova e delicada roupagem, "Hotel Yorba".

 

O mesmo tratamento anti-blues-básico levou a música que iniciou o concerto, "Dead Leaves on the Dirty Ground". The Peacoks são as amantes delicadas e intrigantes que Meg nunca foi musicalmente, mostrando todo um conjunto de texturas que não seriam possíveis no segundo duo de Jack a seguir aos "Upholsterers". O blues era aí uma possibilidade remota e visceral, que ele não aceitava sequer ser capaz de compreender, quanto mais de transmitir a quem o ouvisse.

 

O homem que acabou o concerto "AMEX Unstagged" com o imortal e obscuro "Goodnight Irene" e que não se esqueceu de ir aos aparentemente-não-tão-perdidos-assim cadernos de Hank Williams buscar "You Know That I Know" continua extremamente excepcional nas suas letras negativas, mas parece agora acreditar que para os ouvintes elas fazem sentido e despertam ideias comuns ao serem explicadas, em vez de abafadas por mais um "riff" de guitarra. 

 

Porque se não é assim, como explicar um dos mais belos refrões de sempre da música anglo-saxónica: "I won't let love/ disrupt, corrupt/ or interrupt me"? E como não reparar que ele é repetido três vezes, tantas quantas os argumentos que ele tem contra esse doentio Amor?

 

E como não ficar confundido com a introdução a "Hypocritical Kiss"? O tempo está errado entre o piano e o conjunto dos outros instrumentos, voz incluída, e não há absolutamente nenhum histerismo ou  "falsetto", algo que identificamos, ou queremos identificar, com o estilo de Jack. Mas depois há uma faixa como "Fredom at 21" que, pelo que eu vi nos dois concertos de Nova Iorque, é só uma desculpa para "jam-sessions" em palco e vai ter tantas variantes ao vivo como "Off to the Races" de Lana del Rey.

 

Como em todos os verdadeiros génios, Jack White por estes dias já só se compromete com a sua inspiração. Mas é bom ver que ele não se esconde mais atrás de nenhuma máscara amalgamada de punk com "blues-grassroots". E sendo este o homem que conseguiu transformar "Love Is Blindness" dos U2 numa música interessante, então nada está fora do seu alcance.

 

P.S. De acordo com um artigo da "NYT Magazine", "Blunderbuss" nasceu de uma "mixtape" que Jack White decidiu fazer depois de RZA o ter deixado pendurado no estúdio por conflitos de agenda. Já sabemos agora de onde vem aquela visceralidade rock quase anti-rap de "Sixteen Saltines"...

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