O filme por trás do filme

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"Torre Bela". É o mítico documentário do alemão Thomas Harlan sobre a ocupação de uma herdade ribatejana no Verão quente de 1975, pelos trabalhadores rurais da zona DANIEL ROCHA

Com "Linha Vermelha", José Filipe Costa regressa a um documentário emblemático do 25 de Abril, Torre Bela. E passa do outro lado do écrã para nos mostrar como o filme moldou a nossa imagem da revolução de um modo que ainda hoje ressoa

É a história de um filme que acabou por sair diferente do que se queria originalmente fazer. Ou de dois filmes que saltaram fora dos projectos iniciais. Ou, antes, de um filme que esconde um sem-número de histórias, e de outro que mudou de rumo quando percebeu as histórias que nele se escondiam.

Linha Vermelha, do documentarista José Filipe Costa, chega esta semana às salas depois de ter ganho o concurso nacional do IndieLisboa há um ano e de ter sido aclamado em festivais internacionais. Mas este Linha Vermelha não é bem o filme que Costa primeiro pensou fazer. O seu assunto é Torre Bela, o mítico documentário do alemão Thomas Harlan sobre a ocupação de uma herdade ribatejana no Verão quente de 1975 que nunca teve uma versão definitiva - e enquanto trabalhava, Costa percebeu que o seu próprio filme iria mudar.

"Estava a pensar fazer uma coisa entre o passado e o presente, usar as imagens do Torre Bela para as confrontar com imagens que iria rodar hoje. Por exemplo, [no filme original] o senhor que veste a certa altura os paramentos de padre [que encontra na mansão da herdade] hoje é presidente da Junta de Freguesia de Manique do Intendente [Herculano Martins], e queria perceber até que ponto aquela experiência teve impacto, como é que aquela memória está presente no dia-a-dia dele."

Mas, nas viagens de trabalho ao Ribatejo, a investigação de Costa sobre Torre Bela tomou outro caminho. "À medida que me fui aproximando das pessoas, falando com elas, apercebi-me de que o próprio filme seria o objecto principal, mais do que um instrumento para misturar o passado e o presente. Porque, muitas vezes, as pessoas lembravam-se das coisas através do filme. Diziam, ‘Tal como se vê naquela cena, fizemos isto e isto e aquilo...'"

E o que iria ser um olhar "ontem e hoje" tornou-se num olhar para a memória e sobre a memória de Torre Bela, e de modo bem mais lato de um período escaldante da nossa história, revelado através de um documento que quis ser parte integrante da revolução. Porque, como diz José Filipe Costa, Thomas Harlan "era um realizador de acontecimentos, antes ainda de ser um realizador de filmes".

Viver muito intensamente

Filho do cineasta Veit Harlan, que ficou marcado como realizador oficial do regime nazi com o infame filme de propaganda anti-semita O Judeu Suss (1940), Thomas Harlan quase parece ter procurado redimir o apelido familiar, investindo-se no activismo de esquerda. Aliás, como diz Costa, "no início, ele estava cá numa missão para filmar o máximo possível dos acontecimentos, coisas como a viagem do Conselho da Revolução à cerimónia da independência de Moçambique..." Acabará por ir parar à ocupação da herdade da Torre Bela, propriedade da casa de Bragança, pelos trabalhadores rurais da zona. Ficará por lá oito meses a rodar.

Para Linha Vermelha, Costa viajou por várias vezes à Alemanha para visitar Harlan, então já internado numa clínica de doenças respiratórias. Reteve apenas as gravações da sua voz (que em nenhum momento traem a gravidade da sua doença) para ir pontuando a sua investigação sobre a história de Torre Bela. "Ele estava já fisicamente debilitado e era difícil para mim mostrá-lo. Na última entrevista, poucas semanas antes de morrer [em Outubro de 2010], já estava bastante mal mas ainda assim respondia com entusiasmo. Ao ouvir os ‘brutos' de som [de Torre Bela], percebe-se que ele estava a viver muito intensamente [toda a situação], e ao mesmo tempo a querer participar. Estava sempre a fazer telefonemas, contactos, a fazer as coisas acontecerem... "

O que aconteceu, no caso, foi uma longa-metragem que nunca teve uma forma fixa, com uma série de montagens alternativas a sucederem-se ao longo dos anos. Uma versão, com cerca de 80 minutos, foi distribuída em DVD com o PÚBLICO por ocasião da comemoração dos 25 anos do 25 de Abril; outra, com 105 minutos, foi exibida em sala por Paulo Branco em 2007; fala-se de um director's cut de quatro horas. A ideia era que o material em bruto rodado pela equipa de Harlan estivesse disponível sem encargos a todos aqueles que o quisessem usar nos seus filmes - como de facto aconteceu - mas houve sempre quem levantasse dúvidas sobre a veracidade "documental" de Torre Bela. "Pode parecer, mas não é cinéma vérité. Sempre que há uma câmara, há um ponto de vista, e no caso dele ainda mais fortemente porque era um activista, estava constantemente envolvido."

Fazer acontecer a história

A cena emblemática do filme - a entrada dos ocupantes na grande mansão da herdade, onde remexem nas gavetas e nos pertences dos duques de Lafões - foi efectivamente encenada (alguns dos cooperantes já tinham estado lá dentro, mesmo que muitos outros não), como demonstram as gravações de som que José Filipe Costa encontrou durante a pesquisa. Mas, nas suas palavras, "isso não retira nenhum valor histórico ao filme." "Acredito que aquilo tenha existido noutros locais, e mostra que não existe uma revolução perfeita. Hoje há quem fique muito chocado [com a cena] porque muito provavelmente pensaria que existe uma revolução perfeita, que uma revolução de esquerda tem de ser uma coisa bem feitinha... Isso levanta a questão da imagem e da revolução que essas imagens passam."

Uma questão da qual Costa ganhou a noção exacta durante a sua investigação - entrevistando o director de produção José Pedro Andrade dos Santos (ausente da herdade no dia da rodagem da entrada na mansão), o montador italiano Roberto Perpignani, e alguns dos cooperantes que participaram nos acontecimentos, como Camilo Mortágua ou o "herói" Wilson Filipe. "Nos primeiros dias [de trabalho], fui falar com uma senhora na Maçussa," conta o realizador. "‘Então diga-me lá, a senhora esteve na Torre Bela?' E a senhora diz, ‘Eu não, mas aquele senhor ali do outro lado da estrada esteve.' Fui falar com ele, e ele diz ‘mas então ela diz que não esteve? Claro que esteve, vê-se lá no filme e tudo.' E fui-me apercebendo que havia pessoas que não queriam ser filmadas, que não queriam aparecer. Por um lado, porque já estão cansadas de falar sempre na Torre Bela, por outro porque tudo aquilo suscita algum embaraço."

O que apenas sublinha como Torre Bela é um filme que se faz na cabeça e no olhar de quem o vê, o que levou o cineasta a estruturar Linha Vermelha à imagem da sua investigação. Enquanto documentarista, o seu trabalho anterior - do qual o título mais conhecido é Entre Muros (2002) - era mais "tradicional": "Estava muito habituado ao lado observacional da realidade. A vai ao sítio B, encontra outras pessoas, isso leva-o a seguir outro caminho... Isso acaba por dar uma determinada articulação aos materiais. Neste caso, tinha muitos materiais diferentes - entrevistas, fotografias, histórias diferentes, pessoas das aldeias e da equipa que fez o filme - e o leit-motiv acabou por se tornar a ideia de dar a ver o processo de descoberta."

Usando a voz de Harlan e os próprios materiais de som e imagem de Torre Bela, actualmente em posse da Cinemateca Portuguesa (à qual o realizador alemão deixou em legado os materiais do filme), Linha Vermelha constrói assim uma investigação sobre os bastidores do filme e, ao mesmo tempo, traça um retrato do cineasta muito mais complexo do que o simples "manipulador". "Há de facto um lado efabulador que tem a ver com a própria vertigem de fazer acontecer as coisas, independentemente de elas depois virem a dar um filme ou não. Ele estava interessado em fazer acontecer a história."

E, a julgar pelo modo como ainda hoje Torre Bela molda a nossa imagem da revolução, conseguiu-o.

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