Gratificar os padrinhos civis seria mercantilizar o amor?

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O Governo está a reavaliar a lei por falta de candidatos a acolher crianças que estão em instituições Daniel Rocha/Arquivo

Um ano depois da entrada em vigor do apadrinhamento civil, tida como uma oportunidade de oferecer uma família a crianças que estão em instituições, o debate recomeça. O número de candidatos foi “residual” e o próprio mentor da lei teme que não ter atribuído um subsídio possa ter sido um erro.

Em Dezembro de 2010, quando entrou em vigor o regime jurídico do apadrinhamento civil, Guilherme de Oliveira, o mentor do projecto, estava longe de imaginar que por esta altura ele estaria a ser “reavaliado” por falta de candidatos a acolher crianças que estão a cargo de instituições. O especialista em Direito da Família pensa que isso se deve ao facto de a figura não ter sido devidamente divulgada, mas admite que vale a pena debater outras questões. “Será que uma gratificação seria um incentivo ao apadrinhamento?”, pergunta. Revela que ele próprio defendeu que sim, mas que “dentro do grupo de trabalho venceu a tese, que foi de encontro à vontade da tutela, de que isso seria mercantilizar o amor”.

O Instituto de Segurança Social não fornece dados concretos. Em Outubro fez saber que o número de pessoas interessadas no apadrinhamento civil fora “residual”, pelo que a legislação estava a ser “reavaliada”. Agora, através do gabinete de imprensa, volta a usar o termo “residual” em relação ao número de processos e confirma que a “principal dificuldade na operacionalização daquela figura jurídica prende-se com a fraca adesão de potenciais candidatos a padrinhos civis” “A medida continua a ser devidamente monitorizada” e está “a ser avaliada a pertinência de introdução de alterações legislativas”, acrescenta. Quais, não especifica.

Guilherme de Oliveira, director do Observatório Permanente de Adopção, lamenta a falta de divulgação da figura, que “nem os técnicos da área conhecem”. Mas admite que a inexistência absoluta de candidatos – ele próprio não conhece um único caso de apadrinhamento – o surpreende. “Sempre que se falava disto, alguém dizia: ‘Conheço um caso que estava mesmo a pedir uma solução deste género’”. Nem tanto em relação a crianças institucionalizadas, explicita, mais a situações em que amigos ou vizinhos da família biológica, na prática, já funcionavam como padrinhos. “Não quero exagerar, mas a avaliar por essas reacções, e somando todas, logo à partida haveria umas dúzias de padrinhos”, diz.

A lei foi desenhada a pensar nas crianças “para quem a adopção é inviável, mas que também não podem regressar às famílias biológicas”. O nome não foi escolhido por acaso: “Os padrinhos são substitutos dos pais no cuidado das crianças sem pretenderem fazer-se passar por pais”. É o que se pretende: de acordo com a legislação, o padrinho civil assume as responsabilidades parentais e acolhe em sua casa a criança ou jovem, com quem se pretende que estabeleça uma relação afectiva para a vida. A criança recebe, assim, condições de estabilidade emocional, mas não adquire os apelidos do padrinho nem direitos sucessórios. Salvo nos casos em que tal seja impossível ou prejudicial, mantém a relação com a família biológica que, em princípio, tem de autorizar o apadrinhamento.

Um fracasso previsível

O período que antecedeu a aprovação da lei, a sua regulamentação e a entrada em vigor foi fértil em polémicas. Ficou definido que padrinho beneficiaria do regime jurídico de prestações sociais, faltas e licenças equiparado ao dos pais e que teria o direito de considerar o afilhado seu dependente para efeitos de IRS. Mas inexistência de uma prestação em dinheiro para ajudar a suportar os encargos com a criança e a obrigatoriedade da relação com a família biológica, fizeram com que vários especialistas previssem o fracasso da medida.

“A forma como foi feito esse debate contribuiu, principalmente, para a desinformação”, analisa agora Idália Serrão, à época secretária de Estado da Reabilitação e hoje deputada, eleita pelo PS. Considera que “a confusão que nessa altura se criou entre as figuras do apadrinhamento e da adopção, como se uma pudesse substituir a outra, não chegou a ser desfeita”.

Diz que o Governo de que fez parte “iniciou algum trabalho de divulgação da medida e de formação de técnicos, que não terá sido continuado”, mas mostra-se especialmente desapontada com “alguma falta de altruísmo e de generosidade das pessoas, em geral”. “Em público, as pessoas queixam-se de que estão há anos à espera para adoptar. Pedimos o processo e percebemos porquê: pediram um bebé, branco, sem doenças e sem deficiências”, compara. Neste contexto, mantém que alterar a legislação no sentido de atribuir uma compensação financeira a quem apadrinha “não faz sentido: “Todos temos a obrigação de dar o nosso contributo para o bem-estar da sociedade e estamos a falar de relações afectivas”, diz.

Está longe de ficar sozinha naquela posição. Guilherme de Oliveira, admite que o contexto de crise tornou mais difícil a qualquer família assumir o encargo de uma terceira pessoa e que ao excluir a gratificação “se poderá ter perdido uma oportunidade de promover a figura do apadrinhamento”. Já Paulo Guerra, juiz no Tribunal da Relação de Coimbra e membro do Observatório Permanente da Adopção usa a expressão “vil metal”, para mostrar o quanto lhe custa “pensar que, se envolvesse dinheiro, o apadrinhamento civil se ‘venderia’ mais”.

O juiz também atribui à falta de divulgação o facto de não terem aparecido candidatos, maus uma razão para defender que não se deve equacionar a possibilidade de garantir um benefício económico a quem tirar as crianças das instituições. “As famílias pobres amam e criam os seus filhos”, diz, a insistir na ideia de “que o essencial está nos afectos e não no dinheiro”.

“E se os padrinhos pudessem receber essa prestação, mas também prescindir dela, se assim o entendessem?”, sugere Paulo Delgado, professor e investigador da Escola Superior de Educação no Porto , com vários projectos realizados ou em curso financiados pela Fundação de Ciência e Tecnologia, sobre o acolhimento familiar de crianças. A alternativa que aponta apenas visa responder aos problemas levantados por quem se opõe ao apoio em dinheiro, que considera “mais do que legítimo, devido”. “Estamos a falar de pessoas que se substituem ao Estado, com essa imensa vantagem que é dar às crianças, para além de tudo o resto, o seu afecto”, afirma.

Nos projectos que tem desenvolvido contacta principalmente com as chamadas famílias de acolhimento temporário. Pessoas que acolhem as crianças, supostamente por períodos curtos, enquanto técnicos de serviço social trabalham com as famílias e criam condições para o seu regresso a casa. “Nos casos em que a estadia é efectivamente curta não se criam laços, naturalmente. Mas a estatísticas mostram que a maior parte das crianças e jovens fica em famílias de acolhimento “mais de quatro anos, e algumas delas mais de seis anos”, refere. E pergunta: “Alguém acredita que nestes casos não se criam laços para a vida?”.

“Claro que se criam laços”, confirma Celina Cláudio, dirigente do serviço de acção social da associação “Mundo de Abraços”. Aquela organização tem um protocolo com a segurança social para a formação e acompanhamento de famílias de acolhimento, que recrutam, seleccionam, formam e apoiam. Na prática formam uma bolsa – semelhante à que é prevista para o apadrinhamento. Quando, por qualquer razão, uma criança é tirada de casa dos pais, neste caso como medida temporária, escolhem de entre as famílias que estão disponíveis aquelas que julgam ter o perfil mais adequado para que a relação tenha sucesso.

Celina Cláudio assegura que ninguém decide acolher crianças “sem uma dose enorme de generosidade ou com motivações económicas”. Actualmente, diz, as pessoas recebem no total 330 euros por mês – 156 para despesas da criança ou jovem e 176 pela prestação de serviço. “Têm de se colectar, passam recibos verdes, são tributados e, mais do que isso, acolhem crianças que normalmente têm um passado complicado, é uma tarefa muito exigente”, refere.

Tal como no caso do apadrinhamento civil, a criança que é colocada numa família de acolhimento não pode por ela ser adoptada; também mantém, em princípio, o contacto com a família biológica. Para além disso, “e ao contrário do que prevê a lei”, sublinha a responsável da Mundo de Abraços, “muitas, mas muitas vezes o acolhimento ‘temporário’ acaba por se eternizar, tal como se eterniza nas instituições”. As estatísticas indicam-no, Celina conhece casos concretos de jovens que chegaram às famílias de acolhimento aos 13, 14 anos e aos 18 pediram o prolongamento da medida até aos 21”.

A lei limita

Nos casos em que a estadia se prolonga por muitos anos, qual é a diferença entre as famílias de acolhimento e o apadrinhamento civil, então? “O vínculo jurídico, o laço, a pertença. No caso do acolhimento, aos 21 anos, no máximo, acaba tudo”, diz o juiz Paulo Guerra. “A diferença está no subsídio – quem apadrinha não tem qualquer apoio”, responde Celina Cláudio. “É uma falsa questão – se o acolhimento se prolonga está mal, não se devia prolongar, porque é suposto que a criança ou o jovem regresse à família natural no mais curto espaço de tempo”, corrige Armando Leandro, presidente da Comissão Nacional de Protecção das Crianças e Jovens em Risco.

Dulce Rocha, do Instituto de Apoio à Criança, lamenta que não esteja regulamentada a modalidade do acolhimento prolongado. “A lei limita, condiciona”, diz. Critica que se presuma, sempre, que enquanto a criança está deslocada, em acolhimento temporário ou numa instituição, “alguém está a garantir que a família resolverá todos os problemas e poderá receber de volta aquele filho”. “Isto é muito bonito, mas normalmente não acontece”, constata.

Celina Cláudio concorda: “A realidade é muito mais complicada do que somos capazes de imaginar”. Conta a história de uma menina de sete anos, com um defeito físico exuberante, que foi institucionalizada. Fez-se uma pesquisa nacional e verificou-se que ninguém, de entre os candidatos à adopção, se manifestara disponível para receber uma criança com aquelas características. Não se procurou padrinhos – não existia bolsa – nem família de acolhimento, que não a poderia adoptar nem acolher por um período prolongado.

Parecia estar condenada à institucionalização, mas o sistema não rodou de forma automática. Foi feita mais uma derradeira tentativa de recolocação na família, dessa vez com a avó. Esteve lá pouco tempo – o suficiente para se verificar que, de momento, a senhora não tinha condições para cuidar da neta. Optou-se, então, pelo acolhimento temporário. Já foi há algum tempo. A criança está bem e a família de acolhimento não deseja que ela se vá embora.

Oitenta ou milhares?

Em resposta a questões colocadas pelo PÚBLICO, o Instituto de Segurança Social informou, através do gabinete de imprensa, que na sequência “de um primeiro levantamento efectuado pelos centros distritais da instituição, “serão cerca de 80 as crianças e jovens se encontram em condições de serem apadrinhadas”. Um número que é considerado “estranhamente baixo” pelo director do Observatório Permanente da Adopção, Guilherme de Oliveira, que calcula que, “apenas entre as crianças institucionalizadas devem existir muitas mais, talvez milhares”, naquela situação.

De acordo com os últimos dados oficiais disponíveis, em 2010 encontravam-se em situação de acolhimento 9.136 crianças e jovens. Nas conclusões do relatório de caracterização daquele grupo, aponta-se como uma das explicações para os longos tempos de permanência em instituições “a insistência em projectos de reunificação familiar” que não têm efectivas condições para se concretizar. Nesta situação, calculam os autores, poderão estar 1421 crianças e jovens cujo projecto de vida se manteve inalterado de 2009 para 2010.

“Também nos projectos de adopção”, conclui-se “se constata claramente a dificuldade de integração adoptiva de mais de cinco centenas de crianças com situação de adoptabilidade definida, por inconciliação entre as suas características e a pretensão dos candidatos à adopção já seleccionados”. “Deverá então continuar a investir-se dinamicamente na reformulação da intervenção então efectuada, revendo objectivos e acções para se fundamentarem, caso a caso, outras soluções que não as inicialmente planeadas”, aconselham os relatores.

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