As pedras e o tempo

Como acontecia com o precedente "Os Sorrisos do Destino", e talvez mais ainda, "Em Câmara Lenta" trabalha uma forma miniatural, rápida, abreviada, espécie de série B. Não é só a duração (curta: pouco mais de 70 minutos), é sobretudo a organização, o ritmo, a maneira como as cenas se cavalgam umas às outras, em corte ou em sequência, e os buracos que ficam por preencher.


Rápido e abreviado (quase contra a “câmara lenta” do título), e eventualmente em demasia - pois é igualmente nítida a sensação de que certas coisas, para funcionarem plenamente, precisavam de outro tempo ao lume, metáfora calorífera que empregamos também por a história do protagonista (interpretado por Rui Morrison) ser a história de alguém que está, como dizem os americanos, em “slow burn”, e diríamos nós, em “cozedura lenta”.

Morrison quase retoma, aliás, a personagem dos “Sorrisos”, num modelo que, no cinema português (para Lopes, para Solveig, para outros), ele tem encarnado como ninguém: o homem naquela zona difusa entre o fim do que se convencionou chamar a “meia idade” e o princípio daquilo que, para além de todas as convenções (de linguagem), é a velhice. A angústia perante a ameaça de um colapso qualquer, físico ou emocional, porque não se é feito de “betão e pedra”, como se diz no início, e porque o tempo passou, transformando as pessoas em pedra (como na cena perante uma grande efígie de O''Neill). De certa maneira, não é outro o tema do filme, e não é difícil recortar Lopes dentro dele, como crónica de si mesmo e dos seus amigos (O''Neill, mas também a imagem de Cardoso Pires pendurada no British Bar), nós por cá já não todos, e nem por isso muito bem.

Donde que, embora o filme multiplique as mulheres (por três) elas pareçam sempre “ideias”, “hipóteses” de mulher, associadas a cerimoniais (tudo é teatro, teatro “romano”, teatro “oriental”), e o mais importante seja aquilo que se passa entre homens, Morrison e João Reis, irmãos boémios, irmãos da boémia. Aquelas cenas na boite, como um “rat pack” marialva, um Sinatra e um Dean Martin a encharcarem-se de whiskys e canções enquanto sorvem as raparigas em volta: Em Câmara Lenta como filme de um Fernando Lopes tornado crooner, entre a gravidade e a irrisão laid back.

Não funciona sempre - e quando larga a sua “âncora”, o protagonista, raramente funciona - mas nessa dispersão por cenas e tempos sobrepostos há de facto uma gravidade melancólica e elidida que vai criando um peso, sempre a puxar “para baixo”. Naturalmente, acaba-se no fundo do mar, e do homem-rã só fica, estranhamente poderosa imagem, a pele. Que caia a noite, como pela primeira vez em muitos filmes de Lopes ninguém diz.

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