A estranha vida de Steve Jobs

Apesar de oscilar entre o excesso de lacunas e o excesso de detalhe, a biografia oficial do fundador da Apple não deixa de ser fascinante

A biografia oficial de Steve Jobs é excessivamente detalhada no que respeita a alguns momentos da vida do biografado e demasiado sucinta noutros. Ao longo de 700 páginas, Walter Isaacson - autor de biografias de Albert Einstein, Benjamin Franklin e Henry Kissinger, escreveu a do fundador da Apple a convite do próprio - desenha um retrato de Jobs com um detalhe sem precedentes. O livro foi composto com base em dezenas de entrevistas: a alguns dos primeiros funcionários da Apple (incluindo o co-fundador Steve Wozniak), a amigos de juventude, a parceiros e rivais de negócios (entre os quais Bill Gates, que esteve em ambos os papéis), a familiares e ao próprio Steve Jobs.

A versão portuguesa, editada pela Objectiva, omite boa parte das fotografias - algumas até aqui inéditas - que ilustram a versão americana. Se não existirem entraves linguísticos, as fotos são o suficiente para que se pondere a compra da edição americana. O editor do livro em Portugal, Alexandre Vasconcelos e Sá, explica que foi uma “opção editorial” a não inclusão da maioria das fotografias: algumas eram já bem conhecidas, argumenta; outras implicavam um processo complexo de negociação direitos de autor (também não há uma correspondência directa entre os capítulos da edição americana e da portuguesa, já que os editores americanos decidiram dividir um dos capítulos em dois).

Em “Steve Jobs”, um dos grandes méritos de Isaacson - provavelmente, o maior, tendo em conta a figura em causa - é não ser apologético. Jobs é descrito como um dos pioneiros dos computadores pessoais, um caso raro de intersecção entre as artes e a tecnologia, um líder carismático e um gestor de sucesso, que transformou nada menos do que sete indústrias: a dos computadores pessoais; a do cinema de animação (com o estúdio Pixar, onde foi criado “Toy Story”); a da música; a das lojas de retalho (por causa das lojas da Apple); a dos telemóveis; a dos “tablets”; e a da publicação e do jornalismo (por causa do impacto do iPhone e do iPad).

Mas o livro também revela uma pessoa de trato difícil, que manipulava jornalistas, que se apoderava das boas ideias de funcionários da Apple, que humilhava os subordinados, que não tinha consideração por aqueles com quem trabalhava, nem, em alguns casos, por aqueles com quem tinha relações pessoais.

Aos 20 e poucos anos fugiu à paternidade de uma filha (assumiu-o mais tarde) e, por volta da mesma altura, recusou-se a dar acções da Apple ao amigo de juventude Daniel Kottke, que trabalhara nos primeiros computadores da Apple e lhe emprestara dinheiro para regressar a casa quando ambos estavam numa viagem espiritual pela Índia - as mesmas acções que, quando a empresa entrou em bolsa pouco depois, deixaram dezenas de funcionários (que a elas tinham direito como complemento salarial) subitamente milionários. Jobs estava a privar Kottke do tipo de fortuna que muda uma vida. E sabia-o.

O fundador da Apple era também uma pessoa que chorava quando não lhe faziam a vontade, mesmo tratando-se de acontecimentos aparentemente supérfluos, como a decisão de que Wozniak seria o funcionário número um na lista oficial da empresa, e Jobs o número dois.

Tudo isto é descrito em abundância por Isaacson. Especialmente na segunda metade do livro, há uma profusão de pequenos episódios que servem apenas para ilustrar as características de carácter (a atenção ao pormenor, a exigência obsessiva, a falta de afabilidade, o perfeccionismo semi-doentio) que já tinham sido esmiuçadas em capítulos anteriores.

A dada altura, a narrativa resvala para algo mais próximo de um manual de gestão - acontece, por exemplo, com descrições sobre as decisões que estiveram na base da abertura das lojas da Apple ou de algumas estratégias de marketing do iPod. Num texto que é quase sempre de leitura fluida, é nestes capítulos que alguns leitores poderão sentir-se tentados a abandonar o livro ou a saltar páginas. Só na recta final, quando se foca no cancro e nos últimos anos de vida, o autor retoma o aprofundamento biográfico.

Paradoxalmente numa obra tão vasta, há aspectos da vida de Jobs que estão, sem razão aparente, por aprofundar. Pouco se escreve sobre a relação com os pais e quase nada sobre a irmã adoptiva (que desaparece de cena, sem que o autor explique porquê). Também não se diz quase nada sobre as razões que levaram a que a primeira filha acabasse por ir morar com Jobs, a mulher e os restantes filhos, abandonando a casa da mãe.

Da mesma forma, os tempos fora da Apple - mais de uma década, entre 1985 e 1996 - não são contados com o mesmo detalhe do resto. Foi neste período que Jobs comprou e geriu a Pixar, e também que deixou a vida de jovem multimilionário com alguns laivos de “playboy” para se tornar um pai de família.

Apesar destes buracos, que deixam ao virar da última página a sensação de que algo foi escondido ou esquecido, a história de uma criança adoptada que cresce numa família de classe média e que concretiza a ambição de deixar uma marca no universo é, inevitavelmente, uma leitura fascinante.

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