A irredutível aldeia vimaranense

São mil e uma associações. E vêm todas juntas. Estão dentro de câmaras frigoríficas, em fábricas de curtumes e numa casa de jogos fantasma. São a engrenagem da Capital Europeia da Cultura

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Carlos Mesquita Fernando Veludo/nFactos

Cinema e roupinha a secar. Uma casa de banho e uma residência de artistas. O fantasma de uma mesa de bilhar e um radiotelegrafista. Um ensaio e uma câmara frigorífica ex-Pingo Doce. Guimarães tem Associações aos molhos — bizarras, entreabertas, estimulantes, amantes.

— Vêm aí!

— E quantas são?

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Convívio Fernando Veludo/nFactos

— Mil e uma. Uma à frente e umas mil atrás.

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Isabel Machado Fernando Veludo/nFactos

— E são amigas ou inimigas?

— Devem ser amigas, vêm todas juntas.

As mil e uma associações culturais de Guimarães já existiam antes de 2012 e prometem ficar por muitos mais anos depois de o pó assentar na Capital Europeia da Cultura. São, na opinião de muitos, os verdadeiros promotores da cidade.

O P3 armou-se em turista e não precisou de bater em muitas portas para perceber que estavam entreabertas, à espera que alguém lhes desse um empurrão. “Há uma vitalidade invulgar ao nível associativo. Em quantidade e em qualidade”, explicou ao P3 Isabel Machado, presidente da direcção da Convívio, bem presa a um edifício do século XVIII no Largo da Misericórdia, entre os números 5 e 8.

“Antes de haver espaços para a cultura, as coisas faziam-se em sítios como estes, mais próximos das pessoas”. A associação tem 50 anos. É uma “casa aberta”. Ali cresceu o Guimarães Jazz e ali está a ser educada uma escola de jazz. “É uma casa em manobras. É assim que se fazem as coisas. Com o coração”, sublinha Isabel, entre um rodopio de últimas instruções.

“A casa permite isso”. O quê? Tudo. Um vaivém. O DJ Valter Hugo Mãe em 2007 (reza a história que a casa parecia Berlim), a Conversa no Tanque pela primeira vez fora do Velha-a-Branca, em Braga, ou duas residências artísticas de três em três meses, com intervenção directa no labiríntico espaço da casa: nas escadas enviesadas, nos tectos, nos móveis da cozinha, na casa de banho mais bonita de Guimarães...

Espaços mutantes

A vantagem histórica de Guimarães também é “a sua pequenez, a sua escala profundamente humana”. Palavra do vizinho do lado, Carlos Mesquita, presidente da direcção do Cineclube. “É maneirinha... Guimarães não tem uma monumentalidade esmagadora. Parecendo uma desvantagem, é uma vantagem. A roupinha a secar, as flores, as varandinhas... Guimarães é naturalmente assim. E as associações são um reflexo da cidade. Como o Vitória de Guimarães. É uma cidade um bocado gaulesa. Não consigo imaginar a cidade sem esses excessos. Guimarães gosta de si de uma forma radical”.

O que existe são “instituições vivas contaminadas por um espírito não amador, mas amante”. E por isso é fácil tropeçar numa cidade “muito mais aberta do que foi”. “Costumava dizer que Guimarães tinha uma muralha dupla. Uma era a cultura. Já não”.

Agora levanta-se uma pedra e ouve-se falar da recém-nascida CAVE (Centro Comunitário de Artes). “Façam o que quiserem desde que não estraguem”, desafia Sílvia Magalhães, coordenadora de um tubo de ensaio, uma incubadora entalada entre manequins kitsch da loja chinesa e uma série de câmaras frigoríficas do antigo Pingo Doce da rua de Gil Vicente, entretanto transformados em estúdios, salas de ensaio e outras experiências explosivas.

Agora, entre um café e um jesuíta, circula o boato de um Laboratório das Artes que só não tem jeito para assentar. “Sentimos a necessidade de fazer projectos em espaços não galerísticos. Não pensamos. Vamos trabalhando”, explica Luís Ribeiro, fundador de um “espaço mutante” que ocupa espaços “abandonados e decadentes”.

Já foi um teleférico, um hospital, uma fábrica de curtumes. Conversamos numa antiga casa de jogos — ocupada pela "Marcha Lenta", de Manuel Botelho. Soalho com marcas das pernas das mesas de bilhar.

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