Vida de fêmea

Nem Collete nem Agustina. Nem Max du Veuzit nem Barbara Cartland. Nem Natália nem Sophia. A escrita de Rita Ferro, herdeira de uma tradição de observadoras, rica de ironia e distância, foi beber a todas estas autoras nem masculinas nem femininas para, ao longo dos anos, procurar fazer do romance um modo de desenhar, escrever e reinventar a própria vida. Uma vida que parecerá distante, talvez demasiado ficcional, cheia de histórias de não-ditos, de regras para quebrar e de jogos de bastidores com implicações mais profundas do que o quotidiano doméstico.

Talvez por isso fosse surgindo, por entre os romances que foi publicando, uma mulher que olhava para a sua vida como uma espécie de território em permanente reconfiguração, planeando, estrategicamente, onde ficariam os limites da realidade e as fronteiras da ficção. Há um universo de distância entre os livros de Rita Ferro e os outros, subsidiários, que desde então foram surgindo. Atentos a uma cerzidura que se quer invisível, discretos na manipulação das referências literárias e na manipulação do próprio leitor, são histórias demasiado bem contadas para não serem vistas com a sobranceria de quem não gosta de ser apanhado nas curvas de uma história completa.

Deixando de lado qualquer hipótese de humildade e qualquer pedido de compreensão, Rita Ferro conta-nos, com fôlego e imaginação, a história que veio a ser também a sua, num gesto de orgulho e dúvida. Perguntando, recuando, duvidando, vai ao encontro, e sem a protecção que se esperaria da educação que teve, da sua própria vida. E revela-se, revelando-nos a nós, cultores do prazer mórbido de espreitar pela fechadura dos outros sem saber que nos estamos a ver ao espelho.

“A Menina é Filha de Quem?”, romance autobiográfico, não se distancia dos seus outros romances, seja porque nesses outros livros conseguimos reconhecer as fontes de inspiração, seja porque neste percebemos bem o que pode ser memória dourada pelo tempo e reflexão consciente sobre um tempo passado e os seus efeitos no futuro. Em livros como “O Nó na Garganta” (1990), “Uma Mulher não Chora” (1997) ou “Os Filhos da Mãe” (2000), já a autora nos tinha mostrado o modo como havia catalisado a sua vida para o domínio da ficção, deixando-nos sempre na dúvida pelas coincidências. E, sobretudo, pelo compromisso que tinha em relação ao poder de controlo da palavra.

Agora, como se quisesse mostrar-nos o interior do seu próprio discurso, Rita Ferro manobra com perícia tempos narrativos e dramáticos, engajando-nos numa espiral de vinhetas que são como um mergulho de cabeça numa história, uma pequena história, aqui pano de fundo para o que se ia passando num Portugal de famílias, de costumes, de mentiras. “De boas mentiras”, ensinaram-lhe. E ela, a quem sempre disseram para não sobressair, faz da sua vida um romance veloz, amargo quando o entusiasmo toma conta das memórias, suficientemente distante para se poder distinguir o que é efabulação e o que é relato.

“Não sou das que corrigem a verdade por servidão à métrica ou para arrebicar as rendas da narrativa”, diz a autora que, com “A Menina é Filha de Quem?” faz desfilar uma galeria de personagens entre a farsa e a comoção, num exercício de reinvenção de um imaginário “adubado de poesia”. Exagera-lhes os traços, redime-as mais tarde, gere as suas presenças, transforma-as em vultos, em caricaturas de si mesmas para deixar que as nossas dúvidas encontrem, precisamente, o que de mais humano teriam. Generalizando a uma classe, a uma sociedade, revela também um Portugal ainda mais pequenino, protegido por regras cheias de excepções, de meninas que aprenderam a ser mulheres competindo umas com as outras, e de rapazes que deviam ser isto e aquilo e muitas vezes tiveram de ser salvos por elas. Tudo isto numa escrita desassombrada, diletante, militante da própria palavra, que se quer aberta, especulativa, generosa, mitificadora.

Sem se perder em interpretações retrospectivas, como se quisesse compreender ou até justificar acções futuras, observa a sua própria vida através da vida dos outros, num exercício de apagamento de um olhar e de um corpo que foram crescendo “aos sacões”. E, num jogo com a memória, lança pistas de leitura para compreendermos a sua própria família, os Ferro, um corpo estranho num país que nunca soube onde colocar os artistas que conviviam com o regime.

Por isso, sendo um romance sobre uma família, “A Menina é Filha de Quem?” é também a biografia, à escala da mesa de jantar, de um país à procura de figuras tutelares, de uma educação, de um quadro de valores, de uma ideologia antes de todas as ideologias serem políticas. E um livro de uma ironia autofágica, de uma escritora que faz gala em mostrar-se sobrevivente.

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