Velázquez arranhado

“Rixa de gatos” é o mais madrileno dos livros do catalão Eduardo Mendoza. A capital do império agraciou-o merecidamente com o Prémio Planeta 2010

Se Eduardo Mendoza tivesse querido, “Rixa de Gatos” poderia ter sido o equivalente madrileno de “A Cidade dos Prodígios”, a obra mais conhecida do escritor catalão. Mas não foi por falta de ambição que o fresco que retrata Barcelona entre as duas exposições que marcaram a cidade (uma no final do século XIX, a outra nos anos 20 do século XX) não se transpôs para a Madrid de 1936, nos dias que antecederam o eclodir da Guerra Civil Espanhola. Mendoza quis evitar as armadilhas do romance épico: em “Rixa de Gatos”, nenhuma geração se espatifa. Tudo ocorre numa semana decisiva, numa Madrid que ferve quando Anthony Whitelands, um inglês especialista em arte espanhola, chega a casa de um fidalgo de antanho, daqueles a quem só restam largos latifúndios em solo andaluz e quadros nas paredes. Anthony vem avaliar um quadro que pode vir a ser sacrificado em nome de um esforço de guerra iminente.

Os dramas de Madrid, capital pobre e dividida com tudo racionado menos a alegria, já foram suficientemente contados. Para a fina ironia e o desconcerto é sempre mais fácil encontrar estômago: ”Anthony debatia-se entre o receio e o escrúpulo. Uma ex-mulher, uma amante, alguns devaneios e um conhecimento completo da pintura maneirista tinham-lhe ensinado a não minimizar a ira de uma mulher despeitada, em especial numa situação como a sua” (p. 263). Os dias madrilenos do especialista em Velázquez dão para escrever o diário de um banana. Azarento. Enleado entre toureiros, fidalgos, filósofos, espanholas de muito pêlo na venta e os políticos do momento. Azaña, Primo de Rivera e Franco são secundários de luxo que povoam a tela madrilena que vai sendo pintada diante do leitor.

A escrita de Eduardo Mendoza sempre foi cosmopolita, aberta à contaminação cultural. Desta vez, para além da auto-paródia a alguns dos seus livros mais ou menos policiais, mais ou menos de espionagem, como “Sin Noticias de Grub”, “La Verdad sobre el Caso Savolta” (nenhum dos quais traduzido para português) ou “O Labirinto das Azeitonas” (difícil de encontrar), e de algum ambiente de comédia de costumes que se aproxima na forma à linguagem do cinema e do teatro italianos do final da Segunda Guerra Mundial, Velázquez e a sua pintura são os protagonistas alternativos deste “Rixa de Gatos”. Sem nos apercebermos, caímos numa das suas telas povoada de anões ridículos: Francisco Franco, com o seu 1,62 metros era na realidade razoavelmente baixo. Tudo isto depois de aprendermos imenso sobre a vida e a forma de trabalhar do próprio Velázquez, o homem que pintou uma Vénus despida, a primeira na história da pintura espanhola. O mesmo homem que deixava pistas em portas, janelas, feições esfumadas e sombras, e que pintava sem ânimo pessoal mas sempre com fervor.

A Madrid que não chega a ser modernista ganha em “Rixa de Gatos” uma atmosfera de matizes barrocas: “Veste o sobretudo, pega no guarda-chuva, na pasta e no chapéu de côco, despede-se do pessoal e sai com um menear de ancas. Habituado ao percurso, não o incomodam os corredores lúgubres nem a escada à meia-luz. Ao sair encontra a cidade envolta na névoa” (p. 127).

Nos últimos romances, a escrita de Eduardo Mendonza, embora competente, denotava um certo cansaço. ? ?Maurício ou as Eleições Sentimentais” e a “Assombrosa Viagem de Pompónio Flato” tinham pouco brilho. Esses dias terminaram. “Rixa de Gatos” é uma delícia. Irónico, culto, sem nunca sair do esboço traçado com rigor por Eduardo Mendoza. Parece na aparência ser pouco barroco. Mas as aparências iludem. Mal começamos a esgravatar este postal de cor sépia dos dias em que Madrid tentava empurrar-se para a frente sem vontade de desistir, abrem-se páginas de deleite para o leitor.

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