Vida: avarias

O ardor de uma autora central do nosso panorama poético

Ao quarto livro, Bénédicte Houart afirma-se como uma autora central no nosso panorama poético, com uma obra (em expansão para o teatro, a literatura infantil ou o conto) de rara coerência e intransigência. O “programa” desta poesia continua fiel à sua enunciação em “Vida: Variações” (2008): “sabei que sou alegremente culpada / do pior crime de todos / o de desacertar palavras”. Podemos tomar este “desacerto” como figura de um alegre desinvestimento em práticas definidoras de várias tradições do poético, como por exemplo os títulos de poemas, de que esta poesia abdica radicalmente, abdicando também, no processo, de uma leitura centrada no poema como unidade autónoma. A isso, esta poesia prefere (i) ou o impacto de séries breves de versos unificadas quer por um processo retórico, quase sempre formas não-sofisticadas de paralelismo, quer por uma imagem ou uma personagem (a criança, o velho ou a velha, a “avariada”), (ii) ou a dissolução dos poemas num texto mais vasto, de organicidade produzida à maneira de um tecido de motivos musicais que vão e vêm, tal como o verso. O mesmo se diga da arrumação dos livros, que tende para a pura justaposição de textos, decerto porque se crê na ordem profunda que a coerência de temas e motivos lhes impõe, e que a ausência de títulos facilita. Somemos ainda a isto o recorte de um verso muitas vezes próximo da “notação” breve ou rápida (e algo dessensibilizada), o que bate certo com o prosaísmo de uma linguagem que se compraz em registos coloquiais, e por vezes “baixos”, reivindicado em versos decisivos de “Aluimentos” (2009): “bem vejo como este poema é prosaico /as minhas desculpas / os direitos de autor não dão / para mais metáforas do que isto”. O título “Vida: Variações”, agora repetido e “aumentado”, exibe bem este desinvestimento na metáfora, substituída por uma sintaxe que rebate a ideia de variação sobre a de singularidade, assim como a de avaria sobre a da possibilidade do sentido.

A coerência da obra manifesta-se no primeiro poema deste último livro, que remete para “Aluimentos” e relança o processo de variação a partir do momento infantil: “infância aluimentos / pequenos disparates / quantos desapontamentos / calhou-nos a vida em sorte / andamos a brincar à morte, mas / não a fintaremos / infância aluimentos”. A contiguidade de “infância aluimentos” proíbe a hipótese de um tempo primordial (ou de uma metáfora fundadora) que a história posterior corromperia. O aluimento convive com o início, assim como a vida com o desapontamento mas sobretudo com o (pequeno) disparate. Os “direitos de autor” de Bénédicte Houart moram aqui, nesta expansão da infância, enquanto disparate de quem anda a brincar à morte que não se pode fintar, numa indecisão de fronteiras entre começo e fim. A brincadeira é, por seu turno, traduzida de modo feliz em rimas (demasiado) sonantes, como quem proclama muito vocalicamente a precedência do nada - ou a destruição da metafísica como entretém infantil.

Não surpreende, pois, que o aluimento afecte a constituição do sujeito que se vai desenhando nestes poemas por meio de uma notável capacidade para resumir e parodiar a doxa pós-moderna e multicultural (mas também Sá-Carneiro) através de categorias morfológicas como advérbios e locuções, adjectivos, demonstrativos, etc.: “eu não sou isto nem aquilo / sou outra coisa que tal / apenas um pouco diferente / apenas um pouco igual” (p. 19). Ou ainda, seguindo a mesma estratégia e com uma locução muito do agrado da autora (“de modo que”), seguramente pelo efeito de oralização banal e, ao mesmo tempo, aparente rigor “burocrático” que introduz na fala: “de modo que sim / vamos reunindo / certidões certificados declarações... / de qualquer modo estávamos tramados / só não o sabíamos // que a única coisa que não podíamos de todo reunir / éramos nós, me, I, and myself, together” (p.32). O sujeito que não se consegue já reunir percorre nestes versos um espectro que vai da pré-púbere, e muito balthusiana, “rapariga no sofá, lendo e / pressentindo sexo” (p. 79) às “raparigas endiabradas / que nem gatas encarniçadas” (p. 42) e às variações em torno daquela que, por efeito do “corpo empenado / passou já para além da mágoa” (p. 44), que é talvez a mesma que se pensa suicidar conduzindo “para Vale de Canas / com uma corda / no lugar do morto” mas que, lá chegada, se recorda “da araucária / que há anos ardeu”, sentando-se então e chorando “onde as suas cinzas / foram sepultadas” (p. 55), e assim se salvando (pelo menos ela assim o jura em verso).

A esta versão estilhaçada do sujeito opõe-se uma pulsão do sentido literal, profanatória por vezes - “celebrava-se o corpo de cristo / eu rezei pois está claro / ah ele era bom se era” -, muitas vezes sexualizada: “emocionei-me o dia todo / disse o rapaz / vim-me de manhã / vim-me de tarde / vim-me à noite / sou trabalhador dependente / por conta deste e doutros / mundos, acrescentou / a minha imaginação / concentra-se na minha mão”. Trata-se, sobretudo, de recuperar a presença ao mundo, por via de coisas como o corpo e, em particular, do pavão, figura do desregramento sistemático dos sentidos, “overdose” de vida e morte e, por isso, proximidade do chão: “o que eu queria da vida / aproxima-se tanto da morte / que por vezes é aterrador / valha-me um pavão e / outras coisas assim com asas / e bicos e muitas penas por colorir / valha-me um corpo tremendo / reanimando-me as mãos / uma overdose de coisa nenhuma / que me ponha de nariz no chão” (p. 59). No limite, este apelo da presença dispensa qualquer intermediação: “nenhuma oração / é tão poderosa / quanto uma paisagem / ardendo nos olhos” (p. 45). Face ao ardor, o que é de facto a gramática senão uma avaria da presença?

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