Mark Rothko: entre a ascese e o excesso

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“Vermelho”, em cena no Teatro Aberto, em Lisboa, enuncia algumas das mais importantes questões da pintura moderna. O protagonista, Mark Rothko, é um pintor de superfícies de cor que, diz José Pedro Croft, pôs todo o mundo à nossa escala

Irado, Mark Rothko grita para o assistente: "Olha para ela! Olha! O que vês? Diz-me o que vês!". Há outras frases desesperadas em "Vermelho", em cena no Teatro Aberto, em Lisboa, mas têm um destinatário anónimo: o espectador da pintura moderna. Encenada por João Lourenço a partir do texto original de John Logan, a peça transporta-nos para os finais dos anos 50 e o início da década seguinte, período em que coincidem a consagração do pintor e a emergência da arte pop.

A partir de uma série de diálogos entre Rothko (António Fonseca) e Ken, o seu jovem assistente (João Vicente), o texto rejeita qualquer pretensão biográfica ou histórica. Embora enriquecido por frases do artista, nasce da escrita de Logan, dramaturgo e argumentista de sucesso de Hollywood, que durante uma visita à Tate esbarrou com umas misteriosas pinturas vermelhas. Num registo inteligível, quase didáctico, "Vermelho" traz ao público do teatro temas seculares da criação artística, e em particular da pintura - mas que um artista como José Pedro Croft, um dos convidados da antestreia a que o Ípsilon assistiu há uma semana ("Vi a exposição na Tate Modern com os seus últimos trabalhos e há um filósofo espanhol que tenho lido muito, o Amador Vega, que lhe dedicou um livro [‘Sacrificio y Creación en La Pintura De Rothko']. Por isso, quis muito ver a peça"), considera típicos da sua geração. "Quando decidimos ser artistas, não tínhamos nem museus, nem mercado, nem coleccionadores. Dedicámos a nossa vida a fazer uma coisa que não nos permitia sobreviver a não ser com uma segunda profissão. E essa decisão, tão clara para nós, era um gesto criativo de liberdade, que é muito mais do que apenas pintar ou fazer escultura", diz.

A ira do Rothko deste "Vermelho", assinala o crítico e historiador Rui Mário Gonçalves, outro convidado da apresentação, "pode ser uma certa surpresa para muita gente": "A sua obra sugere uma grande contenção. Mas a peça remete para anos específicos da sua vida em que se revoltou contra ele próprio, mais do que contra os outros".

A revolta de Rothko é indissociável do conflito interior provocado pelo convite dos arquitectos Philip Johnson e Mies van der Rohe para decorar, em 1958, o restaurante de luxo Four Seasons do edifício Seagram, em Nova Iorque. No início, agrada-lhe a ideia, mas uma acalorada discussão com o assistente adensa-lhe as dúvidas. E, com as pinturas concluídas (uma série de telas vermelhas horizontais), recua. Devolve o dinheiro, e anos depois doa os trabalhos à Tate. Em "Vermelho", como na sua biografia, é uma visita preliminar ao restaurante que precipita a decisão. A alta burguesia americana que se empanturra com pratos caros e delira com os números da Wall Street não pode, não merece, não sabe ser espectadora das suas obras.

Como música

"A experiência da pintura de Rothko não se confunde o quotidiano", sublinha José Pedro Croft. "A peça começa com um excerto de Opus 100, de Schubert, e um disco da Maria João Pires tem uma frase que diz o seguinte: ‘Os artistas são aqueles que dedicam a sua vida a juntar os pedaços soltos do mundo'. De alguma maneira, são os que ligam o que estava desligado. Isto tem a ver com a religião, com a ideia de re-ligação. Trata-se de uma experiência para o qual precisamos de estar disponíveis. Há um lado de comunhão, mas também de solidão diante das suas pinturas". Rui Mário Gonçalves: "Ele escreveu e pintou muito, sempre em busca de dar à arte a possibilidade de exprimir o sublime. É aí que ela pode cumprir funções semelhantes às das práticas religiosas. Não se trata de dizer se a pintura é religiosa ou não. Mas que existem certos comportamentos a que chamamos religião que têm muito a ver com a arte".

É na ética de Rothko, manifestada nesse gesto de recusa, que o escultor e pintor português vê o principal paralelismo com a "liberdade" da sua geração. Um dos momentos mais interessantes de "Vermelho" é de resto o repúdio a que Rothko vota a arte pop, reacção que deve ser entendida, segundo Croft, como fruto de um conflito geracional. Rui Mário Gonçalves identifica outras incompatibilidades. "A sua pintura implicava uma nova concepção de sensibilidade, mas muito genuína, em que o autor está muito empenhado nas imagens que cria. Já na arte pop há uma certa ironia, uma necessidade de fazer as coisas em ponto grande."

Não que Rothko também não fizesse coisas ponto em grande. As suas telas tinham dimensões consideráveis. "Mas fazia-as à nossa medida e assim era como se pusesse todo o mundo à nossa escala", considera José Pedro Croft. "Agrada-me muito aquela ideia de ele caminhar para uma ascese e ao mesmo tempo gostar de excesso. Fuma muito, bebe imenso, intoxica-se e procura uma espécie de redenção na pintura. Quer acima de tudo ultrapassar os seus limites."

Esta capacidade de fazer pinturas grandes que podiam ser experiências íntimas remete-nos para o repto que as suas superfícies de cor (o escuro e claro, o vermelho, o preto e o castanho, pulsando e flutuando) dirigiam aos espectadores. "Ele mobiliza zonas de sensibilidade que outros nem sempre utilizaram", sugere Rui Mário Gonçalves. "Antes de mais nada, temos de ver, temos de nos sentir atraídos pela interacção das formas. É uma pintura que não cede, só pede ser apreciado como pintura, mas à medida que se vai entrando nas suas tensões e distensões é como a música".

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