Tacita Dean: o filme do nosso futuro

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A nova instalação de Tacita Dean na Sala das Turbinas da Tate Modern é o testemunho de uma artista em risco de perder a sua linguagem: um olhar não sobre um passado com película, mas sobre um futuro sem ela, totalmente rendido ao digital. A morte do filme, denuncia Tacita Dean, seria o fim de um tempo, do nosso tempo. Nuno Crespo, em Londres

"A indústria é uma merda, é o meio que é grandioso", disse Lauren Bacall, e esta frase é o selo que fecha o novo livro de Tacita Dean (n. Kent, 1965), "Film", que acompanha a instalação homónima da artista inglesa na famosa sala das Turbinas da Tate Modern, em Londres. "Fim", escreve a artista, é um gesto dedicado não ao passado mas ao futuro; um grito e uma reivindicação pela continuidade dos meios analógicos, sem sombra de nostalgia, conservadorismo ou ortodoxia. Como um ensaio sobre a potencial perda da linguagem de um artista, um filme acerca do filme.

Escreve Dean: "O objectivo: (...) que compreendamos e percebamos [o filme] como um meio independente e insubstituível e que seja clara a perda incalculável que será para o nosso mundo cultural e social se deixarmos o filme desaparecer. O filme e os seus correspondentes analógicos na fotografia, no som, nas publicações."

A citação inicial de Bacall, simples e directa, toca no coração deste novo projecto da artista britânica: não se trata apenas de celebrar um meio, mas de mostrar que o filme (ou, se se preferir, a película) não é só um pormenor técnico, antes representa a linguagem através da qual certas experiências podem ser pensadas, produzidas e experimentadas. Não, o digital não é a mesma coisa, tem outra sensibilidade, outro mundo e, num aspecto essencial para Dean, um outro tempo.

Tacita Dean é a 12.ª artista convidada pela Tate para ocupar um dos mais importantes e significativos espaços da arte mundial. O seu nome segue-se ao de artistas como Louise Bourgeois, Juan Muñoz, Bruce Nauman, Olafur Eliasson ou Doris Salcedo. A Sala da Turbinas, agora ocupada pelos seres fílmicos de Dean, já foi visitada por 26 milhões de pessoas e é um dos espaços mais democráticos da arte contemporânea: o acesso é livre, sem qualquer bilhete, controlo ou tempo limitado de visita.

A dimensão monumental desta sala começou, diz a artista, por assustá-la, como declarou ao "The Guardian": "Não sou conhecida por fazer trabalhos em escala monumental; [neste projecto], tive de ir para zonas que nunca antes tinha frequentado. As encomendas para a Sala das Turbinas são sobre o espectacular: e não há maneira de fugir disso. Por isso, pensei: vou fazer alguma coisa espectacular e não um filme de 148 minutos sobre um velhote."

Formalmente, esta instalação é uma projecção de 35mm com a duração de 11 minutos. As imagens surgem numa gigantesca superfície monolítica de 13 metros colocada na parede do fundo da sala, evocando o objecto misterioso e simbólico do mítico filme de Kubrick, "2001: Odisseia no Espaço". As imagens convocam os universos mágicos, alquímicos e misteriosos do cinema experimental e muitas vezes sugerem a sua proximidade com a poesia visual surrealista; misturam-se instantâneos da natureza, planos do espaço arquitectónico da Sala das Turbinas, elementos geométricos cheio de cor a lembrar as pinturas ao estilo "De Stijl" de Mondrian, Van Doesburg, os objectos de Rietvield e imagens da própria película cinematográfica. Tratou-se, explica Tacita Dean no livro, de fazer um retrato do próprio filme, o qual se transformou numa espécie de ideograma: "A Sala das Turbinas como uma película onde se juntam o real e o imaginário no espaço mágico que é o cinema experimental."

Uma região da sensibilidade em risco de extinção

Todo o discurso de Dean é uma tentativa de resgate da experiência do cinema, mostrando que essa experiência tem especificidades únicas próprias da linguagem e do meio. Argumenta a artista: "O cinema feito com filme é muito diferente do cinema feito e mostrado digitalmente. No contexto da arte, esta diferença é bem entendida, porque o mundo da arte aprecia a especificidade do meio desde a Renascença: os murais de Giotto são frescos, que foram pensados, feitos e vistos de um modo completamente diferente de uma pintura a óleo de Leonardo da Vinci; em arte percebemos que um esquisso não é uma aguarela e que um desenho não é um relevo; são feitos de maneira diferente e a experiência que temos ao vê-los e ao tocá-los é totalmente distinta. Podem partilhar o mesmo conteúdo, as mesmas imagens e até ser cópias um do outro, mas não são a mesma coisa. No entanto, são sempre imagens. Por alguma razão existe uma cegueira cultural relativamente à diferença entre filme e digital [...]. Ambos são imagens, em alguns casos cópias um do outro, mas não são a mesma coisa - um é luz em emulsão e outro é luz através do pixel."

Estas diferenças determinam a natureza e a vida dos trabalhos de Tacita Dean. Para ela, o filme de 16mm, com que habitualmente trabalha, é a linguagem que utiliza para poder falar, dizer, criar. O filme está para a artista como as palavras estão para o poeta: é a sua linguagem possível, o seu meio natural de expressão. "Encontrei no filme de 16mm um meio com o qual fiquei imediatamente confortável; cresci com ele. O filme é o tempo tornado manifesto: o tempo com duração física - 24 ‘frames' por segundo, 40 ‘frames' em película de 16mm [...]. O tempo nos meus filmes é o tempo dos próprios filmes."

É verdade, e a artista reconhece-o, que o digital introduz uma facilidade e um pragmatismo na construção dos objectos visuais que a utilização de película não permite. Mas não só, como diz a artista, "muita invenção e artifício surgiram destas limitações", como para ela a resistência do material e as suas exigências são essenciais: "Necessito de resistência material às minhas ideias e é isto que mais tenho medo de perder. O meu processo é um trabalho incompreensível e anacrónico, tal como é qualquer processo artístico. O filme é o meu material de trabalho e eu preciso das coisas do filme, tal como um pintor precisa das coisas da tinta."

Todo o discurso da artista, que se pode experimentar na projecção feita para a Tate, prende-se com as qualidades próprias, a personalidade, enfim, a poética da película cinematográfica, que permite um tipo de experiência visual e sensível totalmente diferente. Perder o filme significa perder não só essas experiências, com o potencial risco de desaparecimento de uma região da sensibilidade humana, como perder a proporção e a objectualidade das imagens: "Com a televisão e a Internet perdeu-se a proporção das imagens e a distorção tornou-se normal. A precisão do formato original parece totalmente irrelevante."

Todos estes aspectos, sintetizados nas imagens sedutoras, poéticas, expressivas e muito impressionantes que continuarão a ser projectadas no monólito da Tate até 11 de Março permitem que a experiência do filme é uma experiência aurática: um acontecimento singular, único, que ocorre num lugar do espaço e num intervalo de tempo. E neste aspecto Tacita Dean mostra o filme como singularidade que não é possível substituir por outra, alegando ser mais ou menos a mesma coisa. Diz ela: "Análogo significa equivalente e o digital não é análogo do analógico"

Uma singularidade que a artista apresenta como própria da experiência com a arte: "Os artistas [...] preocupam-se com a singularidade e a aura dos seus objectos e com a sua presença nos espaços onde são mostrados. Quer se trate de uma fotografia em papel com nitrato de prata ou de uma impressão digital, de um filme de 16mm ou de um vídeo digital, os artistas escolhem e compreendem muito cuidadosamente o seu meio."

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