O homem que deu o peito às balas

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Pedro Cunha

Carlos J. Pessoa volta a falar, em “O Mundo em que Vivemos”, de um país que precisa de ser construído a partir da história de cada um. É assim há 21 anos no Teatro da Garagem: texto implicado, actores que nunca são só personagens, espectadores que são cúmplices. Até domingo no Teatro Taborda, em Lisboa

Carlos J. Pessoa, 45 anos, dramaturgo, encenador, professor e director do Teatro da Garagem, nunca saiu de um armazém nos arrabaldes de Lisboa. É um armazém frio, escuro, isolado, habitado por osgas que lhe comem as moscas e por ratos que se divertem entre os objectos que ele lá vai deixando. Ali perde horas a tentar arrancar os dentes-de-leão da terra, vergasta as costas a serrar a cerejeira que não vingou; ali se esquece de usar protecção e deixa que a fibra de vidro lhe provoque uma infecção que o atira para o hospital; ali, por um milésimo de segundo, não ficou esmagado com o peso da aparelhagem da adolescência. "Falo de vida e de morte, do aqui e do agora, de uma escrita aberta e viva". É assim há 21 anos, tantos quanto os que tem o Teatro da Garagem, companhia que dirige e que está sedeada no Teatro Taborda, em Lisboa, mas que tem o coração ali, naquele armazém onde Pessoa passou o Verão a construir os mais de 27 objectos que hoje fazem o essencial da peça "O Mundo em que Vivemos", para ver até domingo.

Nesse Verão, Pessoa não conseguiu escrever uma única palavra. Bloqueou e deixou de conseguir distingir esse quotidiano passado na terra (e no hospital) do teatro a que, diz, entregou a vida: "A natureza imita a arte. Quando mergulhas neste abismo, és o veículo de qualquer coisa que te transcende." Diz que a peça que agora vai terminar será aquela em que ele, preguiçoso confesso, se descobriu "mais aliviado": "Achei sempre que devia salvar qualquer coisa, a civilização, Portugal, as instituições, o próximo. Há uma espécie de espírito cristão que me anima. Não sendo católico, há uma fé que me faz tentar fazer com que isto corra bem." Mas, continua,

"a civilização ocidental acabou, e há outra que está a nascer". Conclusão: "Isso liberta-me terrivelmente. A Europa está a acabar, as instituições estão a ruir. Portugal não existe, é comandado por uma coisa estranha, uma ‘troika'. A arte nunca foi tão livre e eu nunca me senti tão bem porque está tudo por fazer". É por isso que, ao pessimismo, Pessoa reage como "um humanista militante". Acredita que "o bloqueio no qual estamos mergulhados" se resolve através da "confiança e da cumplicidade". "Fazemos um pacto. Eu e tu damos a nossa palavra. Se um falha, está lixado. Lixado por aquilo que fez a si próprio".

Foi sempre assim o teatro do Teatro da Garagem. Um pacto com a palavra. Dizem-lhe, às vezes, que é "moralista", "racionalista", "determinista", autor de "textos auto-complacentes". "Uma ova. Obviamente tenho muitos defeitos, mas isso é ler as coisas de modo errado. A Garagem sempre teve outra preocupação. Somos bons samaritanos, queremos ver o lado bom das coisas, tratar bem as pessoas. Muito mais importante do que eu é a Garagem. Muito mais importante do que a Garagem é o teatro. E muito mais importante do que o teatro são as pessoas".

Escavar

São mais de 20 anos de escrita. De uma escrita em que "a palavra, para ser importante, tem de ser escavada". Em que, para "ter uma relação telúrica", Pessoa traduz o verbo escrever pela acção de "sujar as mãos". Vinte anos a tentar perceber "porque é que a natureza imita a arte". E, numa peça feita de monólogos, de palavras que tentam dialogar com objectos, monstros, cadáveres esquisitos, disformes, Pessoa fala da Europa, como antes já o havia feito num texto que hoje lhe parece premonitório, "Pentateuco: Manual de Sobrevivência para o ano 2000". Dizia uma personagem, chamada de Espectador, numa das partes desse ciclo, "Desertos": "Hoje em dia a Europa joga um ténis amável, tendo por adversário a parede irredutível da História". E, mais tarde: "Algumas personagens da História europeia reúnem-se para salvar a Europa de um mal que designam por má consciência, crise moral e cultural!... Estão num deserto." Insiste: "A nossa génese é totalmente absurda e descontextualizada, estamos num deserto, repito, num deserto de referências, onde qualquer traço que se apresente, indiciador de um vínculo, de uma ligação, enfim de uma paternidade... esbarra com a nossa ignorância, com esta horrorosa orfandade..."

Onze anos depois, Carlos J. Pessoa olha à sua volta e diz: "O maior erro da Europa foi não se submeter a sufrágio, não se democratizar e optar pelo caminho da racionalidade técnica." Isto é ele, um institucionalista, a reconhecer o fim do mundo em que vivemos. E, ainda assim, a pedir que nos levantemos. "Temos de regressar à alquimia do encontro. Vai sempre haver cínicos, isso é inevitável na vida, mas acredito que vamos sair daqui melhores pessoas, menos deslumbrados, menos cépticos, menos maldosos. Vai ser cruel e duro, mas acredito que nos vamos tornar melhores pessoas. Temos de ser lúcidos e fortes, de ter muita coragem."

E o teatro, no meio disto? O teatro a que ele dedica a vida, e para o qual escreve permanentes "memento mori", recuperando o sentido etimológico da palavra arte: fazer. "Isto não é propaganda, tem a ver com o mistério e a magia", um combate contra "uma sociedade de medrosos, cínicos, cobardes, que têm medo do face-a-face." O seu teatro, "muito auto-irónico e auto-crítico", é feito de "actores e não de modelos", a quererem dizer de cor a frase do filósofo Emmanuel Lévinas: "No rosto do outro está o que denuncia a minha responsabilidade perante ele". Para que as coisas mudem, para que não caiam em "formas distópicas de governação e de institucionalização da vida em comum", é "determinante o papel da arte".

Como continuar? Pessoa pede que se dê o peito às balas, como no final de "Grand Torino", de Clint Eastwood. "Como eu fiz ao longo de 20 anos por uma sociedade que acabou". Logo a seguir, emociona-se: "Eu é que me sinto em dívida. Ninguém me deve nada. Eu é que devo tudo."

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