A possibilidade de um gesto

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Quando, há um mês, os coreógrafos Sofia Dias e Vítor Roriz receberam o prémio Jardin d"Europe, em Bucareste, Roménia, com a peça Um gesto que não passa de uma ameaça - de hoje a sexta no Espaço Alkantara, Lisboa -, o júri de críticos destacou a sua "minuciosa reconstrução e detalhada investigação sobre a palavra, a voz e o som na sua relação com a interpretação".

A peça, que teve a sua primeira apresentação em Julho, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, "construía uma identidade própria, ao se lançar num processo contínuo de questionamento da coreografia através de um trabalho, ao mesmo tempo físico e criativo, enquanto abria um espaço poético de pensamentos, emoções, através do modo como os dois intérpretes activavam um espaço de íntima descoberta".

Esta definição é sintomática do discurso dos dois coreógrafos que, com esta distinção, chegam à primeira linha da novíssima criação contemporânea europeia. E fazem-no sendo absolutamente fiéis a um discurso recolhido, distante de modelos finitos e atento a uma continuidade ao mesmo tempo narrativa e coreográfica como há muito tempo não se via (ou não víamos), de forma tão dessassombrada, na dança contemporânea. Fazem-no, sobretudo, num contexto onde a pressão dos modos de produção, programação e circulação tendem a atrofiar a própria criação, introduzindo variáveis condicionantes do ponto de vista estético e discursivo. Isso mesmo foi exposto na edição do festival de dança Explore onde a peça de Dias e Roriz se apresentou, em Bucareste, e acabou por vencer contra peças que revelavam a longa lista de co-produtores que eram, ao mesmo tempo, sponsors do prémio.

Um caso à parte

Quando os inscrevemos na actual paisagem coreográfica nacional, Sofia Dias e Vítor Roriz representam um caso à parte. A qualidade do seu trabalho, preciso e intenso na sua pesquisa, dono de uma gravidade no movimento e claro na utilização do corpo como elemento condutor da dramaturgia, pode ser lido como o herdeiro natural de uma história que foi sempre mais forte na sua singularidade do que na construção de escolas ou famílias estéticas. Há no modo como têm vindo a desenhar o seu percurso uma consciente atenção não apenas ao detalhe, mas ao modo como na selecção (em vez de na redução) do gesto este se amplifica através de uma outra forma de reestruturação, longe da catarse, como bem identificava Luísa Roubaud na crítica publicada em Julho no PÚBLICO.

E Um gesto que não passa de uma ameaça opera a partir de princípios de ocultação e revelação que vão construindo através dos corpos dos dois intérpretes jogos de palavras, de movimentos e de imagens. Jogos que, na sua fluidez narrativa e discursiva, permitem o desenho de um mapa referencial lúcido, cheio de encontros inusitados entre a palavra e o gesto, entre a imagem e o seu significado, onde parece ser suficiente a poética do acto de enunciação.

É este trabalho com a palavra, a língua (o inglês) e a voz que antecipa o movimento ou o complementa que caracteriza a linguagem de Sofia Dias e Vítor Roriz. De igual modo os movimentos de um e de outro autor complementam-se, ampliam-se e transformam-se, num hipnótico gesto de mutação. Já em peças anteriores, como Again from the begining, de 2008, e Unfolding, de 2009, tinham definido que a matéria coreográfica que lhes importa transvazava a própria dança e fazia-a entrar em diálogo, quando não em confronto, com a própria ideia de um movimento. Agora atingem um ponto alto do seu percurso, antes de partirem para a nova criação que resulta do prémio que agora receberam.

Hoje, a peça é antecedida por um minuto de silêncio e em blackout em solidariedade com a greve geral e, amanhã, precede a apresentação do livro Arremesso II, edição de imagens e ideias feito em colaboração com Catarina Dias e Cíntia Gil.

Espaço Alkantara

Calçada Marquês de Abrantes, 99.Lisboa. 24 a 26/11, 21h30

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