O Megaville

“O Mundo no Arame”, na sua articulação entre totalitarismo e ficção científica, é assim a modos que um “Testamento do Dr. Mabuse” para os anos 70...

Da arca de Fassbinder salta agora “O Mundo no Arame”, mini-série de dois episódios, ou telefilme em duas partes, conforme se prefira, realizado para a televisão alemã em 1973. Não é uma novidade absoluta - a Cinemateca mostrou-o na retrospectiva Fassbinder de 2007 - mas vem em versão restaurada muito recentemente, com estreia mundial em 2010. “O Mundo no Arame” é Fassbinder a jogar com códigos e elementos que poucas vezes se associam ao seu universo: os da ficção científica. Abre-se uma recensão de “O Mundo no Arame” e lêem-se imediatamente imensos nomes que não é costume ver citados quando o assunto é Fassbinder: Philip K. Dick, Kubrick, a saga dos “Matrix”, até Cronenberg, cujo “Existenz”, se não cita explicitamente o final deste filme, fica lá perto...


Adaptado de um romance de ficção científica de um escritor americano (Daniel Galouye) com título abundantemente sugestivo (“Simulacron 3”), sem dúvida que o efeito de “contemporaneidade” impressiona, tanto os seus assuntos estão hoje (e por certo mais do que em 1973) na ordem do dia: um mundo a tender para o puro simulacro, a preponderância da tecnologia informática, o “corporate power”, a promiscuidade entre as grandes corporações e os governos, a destruição da identidade individual, a invenção da identidade virtual - o catálogo é extenso, e a acumulação destes elementos, mais fantasia menos fantasia, cria um mundo, de facto, “no arame”, uma desordem reconhecível (porque, em parte, é a nossa), acrescida da inquietante e tão fassbinderiana angústia da iminência da catástrofe, porque o desenho de fundo é, evidentemente, o de um mundo que se “totalitariza” em espectacular opacidade, uma vez lançado o isco da “democracia tecnológica”.

Estas campainhas, pelo menos nos detalhes, são mais de 2011 do que de 1973, e se são óptimas razões para que se recupere “O Mundo no Arame” conviria não reduzir tudo a uma questão de “antecipação”. O futuro vemos nós, Fassbinder talvez pensasse mais no presente e no passado da Alemanha. Da Alemanha Federal dos anos 70, aquele ambiente crispadíssimo do pináculo da guerra fria e dos “anos de chumbo”; e da Alemanha de algumas décadas antes, porque a desordem “futurista” de “O Mundo no Arame” convoca ecos da desordem nos anos do estertor da República de Weimar, não muito longe dos termos em que o próprio Fassbinder, anos depois, a filmaria na “Berlin Alexanderplatz” adaptada de Doblin (e a sensação de que “O Mundo no Arame”, na sua espécie de sobrecarga narrativa, nos desvios e diversões, é um “ensaio” para essa série apodera-se-nos dos espírito bastante cedo e não se esvai). Tanto mais que para além de convocar quase toda a sua “família” (atenção ao “cameo” de um muito jovem Werner Schroeter), Fassbinder faz de “O Mundo no Arame” um pequeno catálogo das suas influências e referências: se o filme nos ensina de que maneira se podem ligar os espelhos de Sirk às superfícies baças de Kubrick, o “Alphaville” de Godard é uma inspiração óbvia e predominante, confirmada até pela presença de Eddie Constantine; e com ou sem essa mediação, o espírito do “filme negro” americano (que Fassbinder, noutros filmes, já evocara várias vezes), e através dele a sua raiz, germânica como se sabe (pois o “filme negro” foi praticamente uma invenção dos alemães emigrados, ou exilados, em Hollywood). Portanto, todos os caminhos vão dar a Weimar, sombra e exemplo histórico que tantas vezes Fassbinder fez recair sobre a Alemanha sua contemporânea. “O Mundo no Arame”, na sua articulação entre totalitarismo e ficção científica, é assim a modos que um “Testamento do Dr. Mabuse” para os anos 70...

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