O desaparecimento da criança que mudou o país chega a tribunal

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Rui Pedro está desaparecido desde Março de 1998

Único suspeito do processo será julgado pelo rapto de Rui Pedro esta semana. A investigação de crimes envolvendo menores em Portugal está diferente.

Não é apenas a família de Rui Pedro que não esquecerá o 4 de Março de 1998. A criança de Lousada desapareceu nesse dia, quando tinha 11 anos, mas esse acontecimento não mudou apenas a vida dos Mendonça. A investigação deste tipo de casos em Portugal e a forma como a opinião pública os tem acompanhado também foram atingidas. O processo chega a tribunal na próxima quinta-feira, com o julgamento de Afonso Dias, acusado do rapto do menor.

O que aconteceu a Rui Pedro nessa tarde ainda hoje é um enigma para as autoridades, mas, após 13 anos de investigação, o único suspeito do processo será julgado pelo rapto do menor.

A criança de 11 anos não era a primeira a desaparecer em Portugal, mas nunca tinha havido até então um caso tão mediatizado e sob tão forte escrutínio. Até para as autoridades policiais e judiciais o desaparecimento era algo pouco habitual, o que terá motivado os erros que hoje todos reconhecem a esta investigação.

"Num país onde não havia praticamente registo do desaparecimento de crianças com frequência, compreende-se que tivesse havido problemas", avalia um investigador da Polícia Judiciária (PJ). Hoje, ninguém põe em causa que as primeiras horas de uma investigação deste género são cruciais. Porém, em 1998 a prática comum era impor às famílias um período de espera antes de a criança ser dada formalmente como desaparecida. "Nessa altura, iniciava-se a maioria das investigações de um desaparecimento nas 48 horas subsequentes, negando-se até aos pais a possibilidade de participarem o desconhecimento do paradeiro dos filhos antes de decorrido esse período", recorda Patrícia Cipriano, presidente da Associação Portuguesa de Crianças Desaparecidas (APCD).

No caso de Rui Pedro a espera não foi tão longa, apesar de ter passado mais tempo do que aquele que é hoje considerado aceitável numa situação como estas. A família comunicou o desaparecimento do menor à GNR de Lousada no final do dia 4. O Ministério Público avaliou se existiam indícios de crime, antes de a PJ ser chamada ao terreno e em meados do dia 6 de Março, 36 horas depois do desaparecimento de Rui Pedro, o caso foi comunicado àquela força policial.

Mais grave do que o tempo que passou até a PJ entrar em acção, foi a forma como a investigação foi "descentrada" por pistas que vieram a revelar-se falsas, avalia um inspector daquela força policial. O processo tinha passado quase dez anos orientado para a ligação do desaparecimento a redes internacionais de pedofilia e pornografia.

"Na ausência de qualquer outra hipótese, começou a empolar-se essa situação", recorda o mesmo agente. "Choveram" pistas de Itália, Espanha, Bélgica e Inglaterra, foram escritas cartas rogatórias às autoridades holandesas e suíças, mas as informações vieram a revelar-se falsas: "Agora é possível perceber que isto foi nefasto para a investigação. Contribuiu para uma desfocagem da situação inicial".

A reviravolta para o rapto

O processo sofreu uma reviravolta em 2007, quando uma nova equipa da PJ do Porto, liderada por José Monteiro, fez o saneamento do caso. Foram fechadas pistas falsas e recentrada a investigação em factos conhecidos: Rui Pedro terá sido desafiado por Afonso para passar a tarde com uma prostituta. Sem factos novos, houve vários que foram aprofundados e foram feitas reconstituições que nunca tinham sido feitas. A prostituta a quem Afonso terá pago para ter um contacto sexual com Rui Pedro - uma das testemunhas-chave do processo - apenas foi ouvida formalmente em 2008.

Foram precisos 13 anos para concluir a investigação do desaparecimento da criança de Lousada. Afonso Dias, amigo da criança e da família Mendonça, vai responder em tribunal pelo sequestro da criança. Segundo o Ministério Público, o arguido "tinha a perfeita consciência de que a decisão que tomou de levar Rui Pedro a manter contactos e relações sexuais com prostitutas era absolutamente contra a vontade e proibição dos pais do menor". O homem, hoje com 34 anos, está acusado de um crime de rapto qualificado, com uma moldura penal de três a 15 anos de prisão.

A história de Rui Pedro cruza-se com a de Madeleine McCann. Os dois casos têm em comum o facto de serem marcos na forma como a investigação do desaparecimento de menores é acompanhada em Portugal. Contudo, ao contrário do que aconteceu em 1998, no caso da criança britânica a PJ entrou de imediato em acção na noite do seu desaparecimento e mais de uma centena de investigadores da polícia são destacados para as operações logo nas primeiras horas.

Outra diferença entre os dois casos foi a forma como foram mediatizados. "O caso do Rui Pedro não mobilizou os recursos de investigação policial que foram usados no caso da Madeleine McCann. E muito menos captou a atenção ou o envolvimento de membros do Governo, como aconteceu com o caso da menina britânica", avalia a investigadora da Universidade do Minho Helena Machado, que tem estudado o fenómeno.

Uma das razões foi o facto de a família do Rui Pedro não dispor das redes de contacto com o poder de que os McCann dispunham. Além disso, o caso Madeleine "reuniu todos os ingredientes necessários para cativar os media e respectivas audiências, conteve todos os ingredientes de uma narrativa criminal excepcionalmente noticiável", afirma.

Apesar das diferenças, a mediatização deste género de casos começou com Rui Pedro. A família Mendonça conseguiu o que ninguém conseguiu fazer por Rui Pereira, que, praticamente um ano depois da criança de Lousada, desapareceu em Famalicão. Era o dia 2 de Março de 1999, tinha então 14 anos, e o caso, apesar de continuar aberto, não tem tido o mesmo tipo de acompanhamento.

Os dois casos mais mediáticos estão associados às alterações que autoridades policiais e judiciais tiveram que fazer para responder melhor a situação deste tipo. Em 2009, Portugal criou um sistema de alerta nacional para casos de rapto de menores. Durante três horas, as mensagens serão difundidas em televisões, rádios, jornais, terminais de Multibanco e Internet.

"O caso de Rui Pedro foi um marco, fez despertar uma maior sensibilidade quanto a casos como este", acredita Dulce Rocha, presidente do Instituto de Apoio à Criança (IAC). Só depois de 1998, a PJ criou um sítio na Internet onde mantém a informação sobre as crianças desaparecidas.

Esperar 48 horas é errado

Actualmente, a resposta também é mais rápida e, no caso do desaparecimento de um menor de 16 anos, a PJ entra de imediato em acção. "A polícia teve a humildade de assumir que houve no passado algumas falhas, o que é de grande importância para que se alterem as mentalidades de quem investiga e os procedimentos utilizados", afirma Patrícia Cipriano, da APCD. "Há uma atitude mais sensibilizada, mais empenhada e mais cautelosa das autoridades", confirma fonte da PJ.

"A acusação deduzida pelo Ministério Público no caso de Rui Pedro mostra bem que existe agora uma maior consciencialização por parte das instâncias judiciárias, na medida em que foi devida à reavaliação de indícios já existentes", acrescenta Dulce Rocha, do IAC.

Ainda assim, Patrícia Cipriano diz que "ainda há polícias que persistem no erro de informar os pais das crianças desaparecidas que apenas poderão aceitar a denúncia 48 horas depois do desaparecimento". Uma prática "inadmissível, errada e irresponsável", avalia. "Uma criança ou um adolescente são pessoas que, pela sua imaturidade, inexperiência e, por vezes, total dependência dos adultos, são vulneráveis a inúmeros perigos". Nesse sentido, a APCD estabeleceu no mês passado um protocolo com a PJ para estreitarem relações e melhorarem a resposta nos casos de desaparecimento ou rapto de menores.

A presidente da associação aponta, porém, algumas alterações que levaram a que casos como o de Rui Pedro tenham hoje outra visibilidade, como as recentes alterações à Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Risco, que considera o desaparecimento como uma situação urgente que representa um verdadeiro perigo para o menor. A Convenção da Haia sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Menores, ratificada por Portugal, é igualmente vista como um instrumento importante para a rápida recuperação do menor, bem como a criação de uma linha europeia dedicada à participação do desaparecimento de crianças; o número único 116 000.

"É evidente que a mudança não foi radical, até porque a escassez de meios técnicos e humanos das polícias vinha agravar as dificuldades na localização dos menores", avalia a líder da associação criada em 2007 por iniciativa de Filomena Teixeira, a mãe de Rui Pedro.

As mudanças não aconteceram apenas em Portugal, recorda Dulce Rocha. Só em 2001, por pressão das organizações não-governamentais, a União Europeia reconheceu o papel determinante da sociedade civil no combate ao desaparecimento e exploração sexual de crianças e foram criados programas para apoiar estudos e investigações sobre esta temática.

Neste trabalho tem especial relevo a Federação Europeia das Crianças Desaparecidas e Exploradas Sexualmente, Missing Children Europe, ou portais na Internet como o ClickSafe (www.clicksafe.be) ou Child Focus (www.child-focus.org), que apoiam as instituições de protecção de crianças e as famílias de menores desaparecidos. E é quando olha para as ferramentas que existem a nível europeu que Patrícia Cipriano conclui: "Portugal ainda tem um longo caminho a percorrer".

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