A arte de morrer

Estamos próximos do milagre, e francamente não imaginávamos Gus Van Sant como milagreiro

Por esta não estávamos à espera. Que Gus van Sant, depois da sua tetralogia fria e cerebral composta por “Gerry”, “Elephant”, “Last Days” e “Paranoid Park”, nalguns pontos a tender para a mais esparsa abstracção, se atirasse a um filme como “Inquietos”, feito de emoção e de pungência, quase um melodrama de género. Pelo meio houve, claro, “Milk”, filme de reconstituição histórica e intervenção social, mas “Inquietos”, retomando de outra maneira o olhar sobre a adolescência e os adolescentes que dominava, em diferentes graus, aqueles quatro filmes, deixa-o num parêntesis. Provavelmente, “Inquietos” será outro parêntesis, a julgar pela recepção americana, que não deverá ter dado a Van Sant grande vontade de repetir a graça: enorme “flop” (menos de duzentos mil dólares de receita para um orçamento de oito milhões), e muito pouco entusiasmo da crítica, quando não o mais completo arraso.


De “Elephant” ou “Paranoid Park” Van Sant traz, portanto, os adolescentes, e alguma coisa do tratamento plástico e narrativo: a gestão do tempo (sim, é “lento”, não tão lento como “Last Days”, mas é “lento”), embora algumas cruciais elipses venham acelerar o filme; a natureza como presença sensual (o Outono do Oregon, as folhas alaranjadas que cobrem os jardins e cemitérios de Portland); a criação de uma atmosfera musical cuidadosa e discreta (há quase sempre música, embora raramente ela salte para o primeiro plano sonoro - é muito “à Sokurov”). Os adolescentes, por seu lado, são um pouco diferentes dos “skaters” de “Paranoid Park”: articulados, cultos, espertos. Ainda um pouco sonâmbulos, e certamente um pouco rebeldes, mas sonambulismo e rebeldia que se conjugam noutros termos.

São adolescentes “idealizados”? Talvez, porque embora o par central (Henry Hopper, filho de Dennis, e Mia Wasilewska) seja sempre “real” e credível, “Inquietos” trabalha mais em “cinema”, no sentido clássico, do que nesses outros filmes, e consequentemente procura mais ter “personagens de cinema”. Realismo e verosimilhança que não sejam os construídos pelo próprio filme interessam pouco. Até há um fantasma, o de um “kamikaze” japonês morto na II Guerra, e ai de quem não acredite na sua realidade e verosimilhança - Van Sant tem um lado “esponja” (é ver como “absorveu” Bela Tarr, não nos admirávamos que este fantasma viesse de Apichatpong e de um cinema que desse por adquirido que é normal que os vivos, os mortos, os moribundos e os fantasmas convivam na mesma ordem de realidade (fílmica, pelo menos).

E é de morte que se trata, evidentemente. O que acontece quando um miúdo de nome bíblico, obcecado com funerais de estranhos (depois perceberemos porquê), e uma miúda com nome de heróina de Poe, apaixonada pela vida (estudante de Darwin e de ornitologia) mas cancerosa em estado terminal, se conhecem e se tornam, durante os três meses que restam, namorados. Alguns grandes dramalhões (“Love Story” ou aquele “Dying Young” dos anos 90 com Julia Roberts, por exemplo) foram feitos a partir das mesmas premissas. Mas “Inquietos” é tudo menos um dramalhão. Isto tem causado engulhos: aparentemente, segundo algumas críticas americanas, não é possível “rir” num filme sobre a morte sem que isso signifique “falta de respeito” pelos mortos (aqui, voltaríamos a Apichatpong: não é possível “rir” no “Tio Boonmee”, ou já nem Tailândia se respeitam os mortos?). Acontece que nada faz propriamente “rir” em “Inquietos”, antes é um filme cuidadosamente limado de todos os clichés sobre a “morte jovem”, com personagens que, justamente, aceitam esse destino ao mesmo tempo que, muito romanticamente, o vivem como uma espécie de teatro (como na cena em que citam, sem citar, uma cena do “Romeu & Julieta”).

Se a gente se ri, ou sorri, é porque ter o coração quente dá vontade de rir e sorrir, e a justeza emocional de “Inquietos”, sobretudo nas pequenas coisas (os beijos, as zangas, as cartas), é admirável, e Hopper e Wasilewska são perfeitos nessa mistura de convicção e “maladresse” de que as suas personagens são feitas. Para que não fiquem dúvidas: em “Inquietos” não está em causa outra coisa que não seja a “arte de morrer”, como nos melodramas de Frank Borzage nos anos 30 onde estes papéis seriam interpretados por James Stewart e Margaret Sullavan. A “arte de morrer”, evidentemente, é uma coisa de cinema. E como nesses filmes, ri-se e chora-se em “Inquietos” porque os actores são luminosos e comoventes, e porque o realizador sabe o exacto valor de uma lágrima (ou seja, não a desbarata, nem a vende demasiado cara).

Estamos próximos do milagre, e francamente não imaginávamos Gus Van Sant como milagreiro. Melhor filme americano do ano? Pelo menos enquanto não estrear o McQueen. E só atrás do “Filme Socialismo”.

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