Os estragos do aço

Um romance magistral sobre o fim do sonho americano

A pequena cidade norte-americana de Buell, na Pensilvânia, estende-se pelas colinas que ladeiam o vale do rio Monogahela. Em tempos não muito longínquos, a indústria do aço fora o seu coração. Os edifícios das antigas siderurgias e das fábricas de manufacturas erguem-se agora como ruínas, entaipados ou entregues ao lento trabalho do musgo e das trepadeiras. No chão, entre motores partidos, eixos e engrenagens ferrugentas, podem ver-se já as pegadas dos veados e dos coiotes, que parecem ter voltado a casa muitas décadas depois. É neste cenário pós-industrial, feito também de velhas minas de carvão derruídas, de campos de escórias e de pilhas de aço enferrujado, que se movimentam os jovens Isaac English e Billy Poe, as personagens principais de “Ferrugem Americana”, o aclamado romance de Philipp Meyer que é, sobretudo, uma dura história de lealdade entre amigos.

Isaac tem 20 anos, era o miúdo mais esperto da cidade e talvez do vale, sonhava ir estudar astrofísica para a Califórnia, mas a mãe suicidou-se há cinco anos, a irmã (mais velha) partiu para a universidade, e ele ficou no vale a tomar conta do pai entrevado (“coluna partida na L1, neuropatia progressiva”) numa casa grande e decrépita. O outro, Billy Poe, é um ano mais velho do que Isaac, bastante mais forte fisicamente, “ferve em pouca água”, foi uma estrela de futebol americano no liceu da cidade, ganhou uma bolsa para continuar a jogar numa universidade, mas a inércia e a mãe deixaram-no com os pés presos ao chão do vale e também ele não partiu; vive com a mãe costureira, que o pai bêbado abandonou há uns anos numa caravana dupla estacionada ao cimo de uma estrada de terra; está meio deprimido por ter sido despedido de uma loja de ferramentas, e por vergonha tem vindo a adiar a inscrição para um emprego nas lojas Wal-Mart; caça veados, a carne da qual se alimenta, à semelhança do que fez o pai, nos bosques em redor; a mãe é amante ocasional do chefe da polícia, facto que já lhe evitou problemas graves.

É neste ambiente de decrepitude sombria, sempre tenso, numa comunidade corroída pela pobreza e por um desespero interiorizado e por enquanto contido, que Philipp Meyer coloca as personagens deste seu poderoso romance que, entre outras coisas, disseca os efeitos, nos dias de hoje, da dissolução de um certo sonho americano de “prosperidade eterna”.

Com uma estrutura narrativa polifónica (mas apenas na aparência) - os capítulos vão alternando entre as diferentes personagens, cujo nome lhes dá o título, mas a voz narrativa mantém-se, à excepção de quando é utilizada a técnica do “fluxo de consciência” -, Philipp Meyer encontra na morte acidental de um “vadio” (o homem foi assassinado brutalmente quando os dois rapazes se aprestavam a sair da cidade e a chuva os reteve) a chave para abrir ao leitor os complexos mecanismos emotivos que vão ajudando a aguentar à “superfície da água” a vida daqueles homens e mulheres, habitantes de uma comunidade que, estranhamente, ainda parece esperar a redenção de uma qualquer “culpa” por aquilo em que se tornou (sem saber como) mas que não aceita. “O vale estava a recuperar. Só que nunca seria o que era dantes, e era esse o problema. As pessoas não se conseguiam adaptar a isso - aquele fora um lugar rico, ou não rico, mas a sair-se bem, com todos aqueles siderúrgicos a ganharem trinta dólares por hora, havia bastante dinheiro. Decaíra muito. Agora, ninguém vacilava se lhe oferecessem o salário mínimo.” (p. 113)

A “ferrugem” com que o escritor titula o romance não nos remete apenas para a oxidação dos metais abandonados nos pátios dos edifícios sem telhado, mas também para os efeitos de uma lenta corrosão social, para uma deterioração das comunidades pelo abandono (ou “deslocalização” para outro continente) das indústrias pesadas. Este é também, em fundo, um romance sobre os custos inesperados (ou talvez nem tanto) do processo de globalização, das transformações mais ou menos violentas ocorridas dentro das comunidades urbanas periféricas que, dolorosamente, se apercebem tarde de mais que não controlavam o seu destino.

O americano Philipp Meyer consegue abordar os temas sem os nomear, apenas enunciando e descrevendo, com a sua prosa vigorosa e o enorme talento de contador de histórias à moda de Mark Twain e outros, as acções das suas desencantadas personagens. Acaba por reunir uma galeria inesquecível, a fazer lembrar alguns “alienados” do enigmático J.D. Salinger. “Ferrugem Americana” é um daqueles romances singulares onde tudo (lugares, paisagens, história, personagens, estilo) parece convergir com naturalidade do acaso para a perfeição trágica; mas claro que isso só é possível graças ao enorme talento do autor.

Sugerir correcção
Comentar