60% das mulheres mantêm nome de solteira depois do casamento

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Poucos homens adoptam o apelido da mulher, permitido desde 1977 Foto: Pedro Cunha

Quase tanto como o vestido da noiva, a tiara de diamantes que usou ou o facto de os noivos não terem tempo para a lua-de-mel, a decisão de Zara Phillips, 30 anos, manter o nome de solteira alimentou as notícias do rescaldo de mais um casamento real. A neta da rainha Isabel, uma desportista medalhada, quer continuar a ser tratada publicamente pelo seu apelido de sempre. Por uma razão simples: foi com ele que construiu a sua carreira no hipismo. Estranho?

Aparentemente sim. Coluna de opinião de Jane Martinson, editora do jornal The Guardian: "É curioso que o facto de uma desportista de 30 anos que quer manter o seu nome por razões profissionais desperte o interesse nacional." Mas é a própria Martinson que acaba por explicar por que razão foi assim: um estudo de Claudia Goldin, uma professora de Económicas da Universidade de Harvard, feito no Reino Unido com mulheres casadas e elevados níveis de escolaridade, revelou que em 87 por cento dos casos elas optaram pelo nome do marido. Há 20 anos, a percentagem das que tinham feito o mesmo não ultrapassava os 80 por cento. Em suma, Zara foi contra a corrente.

Em Portugal o cenário é muito diferente. Os números a que o PÚBLICO teve acesso mostram que a maioria das mulheres mantém o nome de solteira. E que há uma diminuição de ano para ano das que adoptam o nome do marido.

Olhe-se para os dados fornecidos pelo Ministério da Justiça: 62 por cento das mulheres que já se casaram este ano mantiveram o nome de solteira. No ano passado aconteceu com 61 por cento; no ano anterior com 58 por cento (ver infografia). Na verdade, há anos que a maioria não muda de nome depois do casamento. As motivações serão as mais diversas.

Uma questão de identidade

A vice-presidente da Assembleia da República, Teresa Caeiro, por exemplo, manteve o nome de solteira, quando em Junho se casou com o jornalista e escritor Miguel Sousa Tavares. "Não foi uma opção ideológica, nada disso. Teria muito honra em adoptar o nome do meu marido. Mas simplesmente já tenho um nome muito longo", explicou ao PÚBLICO.

"Não fazia ideia de que a maioria das mulheres não ficava com o nome do marido", continua. "Se é por uma questão de afirmação de independência, de igualdade... bem... eu sou uma grande defensora da igualdade entre homens e mulheres, mas acho que há coisas muito mais importantes. É mais importante que partilhem as tarefas domésticas. É mais importante que não seja sempre ela a ter que abrandar o ritmo da carreira profissional, como ainda acontece."

Em Inglaterra, o gesto de Zara foi lido por alguns como mais um acto de "menina rebelde" (qualquer coisa como: primeiro pôs um piercing na língua, agora não quer o nome do marido, Mike Tindall, 32 anos, jogador de râguebi).

Já outros viram na decisão uma atitude feminista. "Esta é uma mensagem de Zara sobre a identidade, sobre a individualidade, sobre a igualdade no casamento. O que ela está a dizer é que, ao casar-se, não abdica de ser a pessoa que é", lê-se no Independent.

Maria das Dores Guerreiro, investigadora na área da sociologia da família e do género, do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia, do Instituto Universitário de Lisboa, diz que o que é estranho em Portugal é que durante tantos anos as mulheres adoptassem o nome dos maridos sem que o contrário acontecesse. "Se não há uma reciprocidade, não faz sentido."

E continua: adoptar o nome do marido e ele não adoptar o nome da mulher é, de alguma forma, um resquício de um tempo marcado pelo "inigualitarismo, quando o homem era o chefe de família e a mulher precisava da autorização dele para viajar ou trabalhar".

Sinal de unidade

Mas nem sempre em Portugal adoptar o nome dos maridos terá sido assim tão frequente. O historiador Nuno Gonçalves Monteiro lembra, num artigo publicado em 2008 na revista Etnográfica, um escrito inglês, datado de 1701, onde se descrevia a situação em Portugal: "Quando [se] casa, a mulher não toma o nome do marido, antes neste particular existe uma grande liberdade para que as pessoas tomem os nomes que lhes agradarem e, por vezes, dois irmãos do mesmo pai e mãe têm apelidos diferentes."

Contudo, com o tempo, mais portuguesas terão começado a fazê-lo. António Figueiredo, director-geral dos Registos e do Notariado, explica que o Código Civil de 1867, vulgarmente conhecido por Código de Seabra, aprovado pela Carta de Lei de 1 de Julho de 1867, nada dispunha quanto à obrigatoriedade ou direito de a mulher usar apelidos do marido. Mas tal era visto, ainda assim, "como símbolo da unidade familiar constituída sob a chefia daquele".

Mais tarde, a lei republicana da família, de 25 de Dezembro de 1910, instituiu no papel essa possibilidade. O artigo 43.º, do Decreto nº 1, passou a estabelecer a faculdade de a mulher usar o apelido do marido, continua Figueiredo. "E esta faculdade era exercida pela grande generalidade das mulheres."

Mesmo assim, excepções sempre houve e não seriam assim tão poucas. Arménia Coimbra, advogada, especialista em Direito da Família, nunca adoptou o nome do marido (casou-se há 35 anos) e o mesmo tinha já sido feito pela sua mãe, há mais de 60 anos. "A identidade é algo que não se adquire com o casamento e acho que estaria a renunciar à minha", explica.

Com os divórcios a aumentar, manter o nome de solteiro pode ser mesmo uma opção mais prática, admite Dores Guerreiro. É que hoje há casos em tribunal de mulheres que construíram toda uma carreira com os nomes de casadas, que se divorciaram e que lutam por manter os nomes dos maridos para não serem prejudicadas profissionalmente (ver caixa), diz ainda Arménia Coimbra.

Homens dispensam mudar

Só em 1977 o Código Civil passou a prever a possibilidade de também os homens poderem ficar com o apelido das mulheres depois de se casarem. Imperou "o princípio da igualdade dos cônjuges" rompendo com "uma longa tradição", explica António Figueiredo. Mas ainda hoje muito poucos homens se fazem valer dessa prerrogativa - apenas dez no ano passado; 12 em 2009; 32 em 2008...

Porquê? "São muito poucos os que estão disponíveis para encarar as críticas da família, dos amigos" que uma decisão dessas pode acarretar, admite Maria das Dores Guerreiro.

Certo é que o casamento tem mudado muito na últimas décadas: há cada vez menos contratos assinados e mais divórcios e a lei admite, desde 2010, que duas pessoas do mesmo sexo possam casar-se. Neste último caso, vale a regra de que cada um pode adoptar o nome da pessoa com que se casa.

O conhecido manequim Luís Borges casou-se recentemente com o cabeleireiro Eduardo Beauté. O tema não lhes passou ao lado. Falaram sobre o assunto. Mas cada um acabou por manter o nome que tinha. "Não demos muita importância", diz Borges. "Na verdade, o que queremos mesmo é ser felizes e isso são pormenores que não consideramos importantes para a nossa felicidade."

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