A geometria fundamental do olhar

O esforço de pensar a evidência e automatismo do olhar

Este livro é um mundo: o mundo das coisas que nos rodeiam e transformamos em imagens e o mundo das coisas internas que dão acesso ao sentido, à linguagem, e à visão.

É certo tratar-se de uma investigação sobre a visão ou, melhor, sobre o que se vê quando se olha não ao nível da produção de sentido, significantes e significados, mas em termos mais profundos. Ou seja, a pergunta feita ao longo destas duas lições de Didi-Huberman é sobre o modo como são formados os objectos da visão a que chama imagens. A pergunta é pela origem e génese da imagens, não num sentido psicológico mas estético e conceptual, que depois se transforma em tentativa de encontrar o modo como certas imagens ficam "investidas de energia" ou sentido.

A inquietação que constitui o seu mote e ponto de partida diz respeito à evidência de o sentido duma imagem não acontecer só por ocasião da descodificação de uma mensagem ou história, mas que a visão constitui como seu objecto não o que vê mas o que, a uma distância intransponível (haverá sempre aquele que vê de um lado e, do outro, o que é visto: a que o autor chama cesura), olha para o olhar, isto é: só se vê aquilo que nos devolve o olhar.Escreve Didi-Huberman: "o acto de ver não é resultante de um mecanismo de percepção do real sob a forma de evidências tautológicas. O acto de dar a ver não é o acto de dar evidências visíveis a pares de olhos que se apoderam unilateralmente do 'dom visual' para se satisfazerem unilateralmente. Dar a ver é sempre inquietar o ver, no seu acto, no seu sujeito. Ver é sempre uma operação de sujeito, portanto uma operação rasgada, inquieta, exaltada, aberta. Todo o olho traz consigo o seu invólucro, além das informações de que se poderia julgar, a partir de dado momento, detentor." (p.57)

Esta descrição apresenta o acto de ver não como estrutura de afecção meramente receptiva e passiva, mas, como diriam os modernos, uma projecção daquele que vê. Por isso os objectos podem constituir-se de formas tão diferentes a cada acto do olhar ou, o que é o mesmo, para cada sujeito. Que o olhar necessite ser inquietado, significa perceber que não basta olhar para ver e que não se trata de um movimento exclusivo da visão: o sujeito na sua totalidade, com todo o seu invólucro, está presente no momento da formação das imagens.

Continua o autor: "olhar seria compreender que a imagem é estruturada como um diante-dentro: inacessível e impondo a sua distância, por mais próximo que seja - pois é a distância de um contacto suspenso, de uma impossível relação de carne para carne. Isto quer dizer justamente - e de uma maneira que não é apenas alegórica - que a imagem é estruturada como um limiar. Uma moldura de porta aberta, por exemplo. Uma fenda num muro ou uma fractura, mas trabalhada, construída, como se fosse preciso um arquitecto ou um escultor para dar forma às nossas feridas mais íntimas. Para dar, à cisão daquilo que nos olha naquilo que vemos, uma espécie de geometria fundamental." (p.221)

Estar diante-dentro invoca o conceito de Walter Benjamin da imagem dialéctica de que o autor se apropria e discute para apresentar a complexidade da visão: está dentro e fora, próxima e distante, ausente e presente. Trata-se de pensar a imagem para além do habitual princípio de historicidade (p.94), o que implica pensar a imagem longe das grelhas de legibilidade impostas e transmitidas pela tradição e entender cada objecto como motivo de uma inquietação que é preciso explorar. Porque "talvez a imagem só possa ser pensada radicalmente para além da oposição canónica do visível e do legível. [...] Por mais minimal que seja, é uma imagem dialéctica: detentora de uma latência e de uma energética. [...] Exige que pensemos o que percebemos nela perante o que nos 'apreende', 'prende' - perante aquilo que nela, na realidade, nos desprende." (p.75)

Em síntese trata-se de uma experiência do olhar onde são conjugados "dois momentos complementares, dialecticamente enlaçados: por um lado, 'ver perdendo', se assim se pode dizer; por outro, 'ver aparecer o que se dissimula'." (p.208)Esta situação é formulada clara e indubitavelmente pelos chamados artistas minimais. E é com eles que Didi-Huberman vai ter para mostrar o modo como as imagens artísticas são os momento chave da formação do olhar, da sua aprendizagem e história. A imagem minimal é pertinente porque apresenta uma dificuldade aparentemente inexcedível: "Eis, portanto, em todo o caso o que permanece difícil de pensar: que um volume geométrico possa inquietar o nosso olhar e nos possa olhar desde o eu fundo de humanidade em desaparecimento, desde a sua estatura e desde a sua dissemelhança visual que abre uma perda onde o visível se estilhaça. Eis a dupla distância que é necessário compreender." (p.116)

Uma duplicidade das imagens feitas pelos artistas que revelam não a natureza dos objectos, mas a constituição do olhar humano. Por isso a arte, nas suas infinitas variações e ficções, é pertinente de um ponto de vista conceptual e humano: por, nos bons casos, revelar a profundidade da percepção e do pensamento.Esta obra é notável e apresenta o esforço de pensar a evidência e automatismo do olhar. Nesse esforço Didi-Huberman invoca filósofos e escritores, como Joyce, Freud, Benjamin ou Derrida, e artistas como Judd, Robert Morris, Tony Smith, e todos estao ao mesmo nível, ou seja, todos são igualmente instâncias de validação e conquista de argumentos para a tese da dupla distância do olhar.

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