Acabou

É aquela altura do ano em que o Harry Potter está por todo o lado. Literalmente por todo o lado: só para Portugal vieram 95 cópias, são 95 ecrãs ocupados com as aventuras do "pequeno feiticeiro" (que, entretanto, já não é tão pequeno como isso, cresceu, é um marmanjão, e não é líquido que "a saga" saiba lidar muito bem com o facto).


Como o dinheiro comanda a vida, também é daquelas raras alturas do ano em que um filme se faz "notícia": vem aí o Harry Potter, vem aí o Harry Potter, naquele misto de frenesi e indiferença com que os telejornais falam de tudo, a "saga mais lucrativa de sempre". Podiam dizer "a mais popular", "a mais querida", "a mais entusiasmante", mas não, dizem "a mais lucrativa". Miseravelmente remediados como somos, resta-nos ficar esmagados com tanta competência na bilheteira.

A talhe de foice, e para que se tenha uma noção das somas envolvidas: em 1937, com a Branca de Neve e os Sete Anões, Walt Disney precisou de um milhão e meio de dólares para influenciar o imaginário de todas as gerações futuras de todo o mundo; em 2011, a empresa sai mais cara: Harry Potter e os Talismãs da Morte: Parte 2 fez-se por 250 milhões de dólares. Rentabilizar isto não se faz de ânimo leve, exige estratégia e disciplina quase militares, recompensadas com seis mil milhões de dólares (números gerais da "saga").

Acontecimento económico, acontecimento empresarial, acontecimento jornalístico (por supuesto): não se contesta, mas nada disto é sinónimo de um acontecimento "crítico" nem mesmo, passe o palavrão, "cinéfilo". Só que, coisa muito do nosso tempo, se estão um elefante e uma formiga, que se lixe a formiga, imperdoável é não se falar do elefante, que é grande, poderoso e detesta que o ignorem. Consequentemente, lá vamos ao encontro do "elefante", de mente aberta (ao contrário, portanto, do espírito de "fã", que ainda não viu mas já adorou), em sessão pública numa sala que, de resto, estava às moscas (se calhar, se calhar, 95 cópias ainda é um bocadinho de mais).

"Tudo acaba", diz a tagline com que o filme tem sido promovido, e esse é um pensamento reconfortante durante as duas horas e tal de projecção. Mas será mesmo assim? Há um conspícuo grande plano com um número 9 na cena final - não nos admirava que fosse maneira cifrada de dizer que mais dia, menos dia estala por aí um son of Harry Potter ou coisa que o valha. Tudo acaba, tudo morre: há muita morte, e muitos mortos (quase todas as personagens secundárias da saga, os antagonistas como os coadjuvantes do herói), nestes Talismãs da dita, e esse é um aspecto minimamente curioso, até pensando numa relação com os "fãs" que foram crescendo com a série (tudo começou em 2001) e têm agora 20 anos, são adultos, e é como se o filme os expulsasse deste paraíso da fantasia e os devolvesse ao mundo real (e isto, juntamente com o tema do amadurecimento, é basicamente o tema do filme). Essa melancolia do fim, visualmente traduzida numa paleta que progressivamente vai eliminando a cor para se cerrar numa tonalidade cinza (sem favor, a fotografia de Eduardo Serra é o melhor do filme), é a única coisa que parece realmente "nova". O resto é a competência industrial do costume, uma narrativa convencional convencionalmente narrada, uma não-entidade ao leme (David Yates) para prevenir rasgos idiossincráticos, em suma, uma elegantíssima banalidade. A nós maça-nos, aos "fãs" entusiasma e certamente temos todos, uns como os outros, a nossa razão.

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