Verdadeiramente falso?

Mário Cláudio inventou uma vida a um poeta desconhecido, Tiago Veiga. Uma história bem contada - mesmo que não seja verdadeira

Há um forte poder de sedução em "Tiago Veiga - Uma Biografia", o último livro de Mário Cláudio, que nasce ainda antes de o abrirmos. Como foi possível que um homem com tanta mundanidade às costas, interlocutor de Pessoa, Cocteau, Régio e Yeats - algumas das relações do poeta que vêm elencadas na contracapa - nos seja desconhecido? A lacuna e a curiosidade unem-se como uma mola que nos faz querer espreitar esta vida. E o mergulho suga-nos.

Tão cedo não vamos querer largar a vida de um homem que nasceu exactamente com o século XX e que o atravessou quase na totalidade. Oitenta e oito prodigiosos anos. Para ele, pelo menos. Para nós se calhar nem tanto, mas isso é a história de um certo desencanto com o que poderíamos ter sido e não fomos, história que nos vai moer durante esta travessia. Azar o nosso.

Tiago Veiga nasce, por circunstâncias da vida dos pais, no Brasil, mas é enviado bem cedo a umas tias minhotas que, a partir de Paredes de Coura, o tentam moldar a varão da província. Aos 13 anos, no seminário de Braga, já leu Antero, António Nobre e Gomes Leal e os franceses Baudelaire e Verlaine. Usa o cultivo das letras como um sucedâneo da oração: "Durante quinze dias alimentara-se quase exclusivamente a leite e romãs, derivando da contemplação das translúcidas grainhas um simulacro de êxtase piedoso" (p. 74).

Do seminário para o mundo é um salto. Os passos que se seguem a este movimento levam-no à Lisboa que vê definhar a I República, enredada na Guerra Mundial, levemente sacudida pelos futuristas que garantem, como Almada, que Portugal precisa de se reinventar para o século XX.

O elenco das errâncias sucessivas em que se entretém Tiago Veiga enquanto cresce como homem e como poeta é vastíssimo e inclui três continentes. As personagens que com ele se cruzam são tutelares, como o presidente Manuel Teixeira Gomes, luminosas embora movendo-se em ruas estreitas e escuras, como Fernando Pessoa, de quem Tiago Veiga evita aproximar-se em demasia, ou então pertença de um mero gabinete de curiosidades que se consubstancia por exemplo no encontro parisiense com Cocteau. Juntas contam mais de meia vida do século de um português. De repente, e graças à extensa documentação e pesquisa de Mário Cláudio, lemos Portugal e o mundo através dos atravessamentos de Tiago Veiga. Que vai poetizando, mas que recusa ser publicado. Que deixa escapar ente os dedos um amor fugaz que conhece numa noite de fogos-fátuos em Lisboa, mas que se consola engendrando descendência em França e na Irlanda e frequentando anos a fio os mesmos bordéis do Porto.

Metade da vida de Tiago Veiga já passou quando entra em cena o seu biógrafo. Estranhamo-lo. Talvez no fundo não quiséssemos que nos viesse estragar o festim de uma vida até aí contada de forma isenta, com uma veia anglo-saxónica - as profusas notas, os anexos, os dois cadernos de fotos e a extensão dão-lhe um charme "british" -, embora o olhar cínico e desencantado sobre Portugal quebre o distanciamento de uma biografia meramente cronológica e oficialmente escancarada.De acordo com Mário Cláudio, a legitimidade para poder por aqui andar é-lhe dada pelo próprio Tiago Veiga no dia em que lhe pede que lhe invente a vida, desde logo avisando-o: "Irão acusar-te de me teres inventado, considerando-se muito argutos pela descoberta, mas não será verdade que cada biógrafo inventa o seu biografado, e que andamos todos nós a inventar-nos uns aos outros?" (p. 650). E exigindo-lhe: "Nada desse truque com barbas dos papéis achados, ou entregues, mas um curioso embuste, apoiado nos teus movimentos da alma, e nos teus ímpetos do coração" (p. 650). Aceitem-se as justificações. Até porque não há outro remédio.

A descrição do primeiro encontro entre os dois é inesquecível. Mário Cláudio descreve um homem incrustado a objectos que pertencem à história que já lemos, a que se junta, "pousado sobre um jornal na mesa de pé-de-galo, nada mais, nada menos do que a 'Poesia 61'" (p. 488). Prova-se que o leão continua fiel à sua raça curiosa. Uma curiosidade que vai legitimando a sua decisão de querer ser até ao fim da vida um poeta de ninguém.

A velhice de Tiago Veiga assoma à nossa frente, vamos escutando os seus ossos encarquilharem-se, enquanto o sarro adensa o desmazelo minuciosamente cultivado. Deixa a ecoar as gargalhadas com que se ri da juventude e do mundo numa viagem tardia a Jerusalém. E um biógrafo amarrado: "Eu assistia com pânico à gradual metamorfose que se declarava em mim, convertendo-me num desses infelizes que se apoderam da carcaça de um notável, e a transformam em seu exclusivo" (p. 711)."Tiago Veiga - Uma Biografia" é um livro fascinante. Pelo muito que nos ensina sobre uma vida, mas também pelo exercício mental em que nos enreda e nos desassossega em torno do que são as verdades que originam ficção e as ficções que geram verdades. Desafia as fronteiras ente biografia, romance, auto-ficção, ensaio histórico e jornalístico, numa montagem de estilos que, justapostos ou mesmo fundidos, se lêem de um sorvo. É tocante e escalda a forma como nos devolve um retrato de nós próprios enquanto portugueses. Tiago Veiga não é Mário Cláudio. Somos nós.

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