O Ministério dos Assuntos Culturais

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O meu querido mês de Agosto (de Miguel Gomes) fez programadores e críticos deslocarem-se a Lisboa para verem o filme

Ministério dos Assuntos Culturais: assim designou André Malraux o Ministério por si criado em 1959, que haveria de se constituir como matriz de todos os Ministérios da Cultura do Ocidente, incluindo o Canadá e a América do Sul, e também muitos países africanos e asiáticos. Ministério dos Assuntos Culturais e não das artes, nem da comunicação, nem só da cultura. Ou seja, de todos os assuntos em que um Estado está envolvido interna e internacionalmente e que têm a ver com a guarda e a conservação da herança cultural de um país, de uma região, de um povo, com a criação cultural e artística do presente, com a sua difusão internacional, com boas formas de captação de públicos e com o estímulo à sua formação. Pela sua missão e pelos seus objectivos políticos, um Ministério destes assuntos culturais é, em si, transdisciplinar, atravessando muitas e diversas formas de governação, tendo hoje a sua acção e intervenção legislativa implicações nos direitos do trabalho, nas questões ambientais, na diplomacia, nos assuntos relativos ao serviço de imigração e fronteiras, etc. Não necessita pois de depender do primeiro-ministro para estabelecer "pontes" com outras áreas da governação.

A anunciada intenção do PSD de extinguir o Ministério da Cultura é errada por várias razões. Comecemos pela razão de natureza simbólica. É estranho que um partido que tanto preza a dimensão simbólica (a bandeira, o hino, a moeda) desconsidere a dimensão simbólica da existência de um Ministério da Cultura na orgânica do Governo. Depois de mais de 50 anos em que governos de todo o mundo, entre os quais os que constituem hoje a União Europeia, colocaram como razão de Estado a cultura, trazendo assim para uma área da intervenção ao mais alto nível as actividades culturais de um país e a sua história cultural, não é aceitável que um Governo possa remeter a cultura para a dimensão técnico-funcional de uma secretaria de Estado. Acresce que, num mundo global como o actual, a disputa pelas influências territoriais e pelo comércio cultural faz-se através de muitos instrumentos da cultura, e muito em particular através de um instrumento maior que é um Ministério; nas reuniões internacionais, nas interministeriais e na designada diplomacia cultural. E finalmente há ainda outra razão simbólica: quando, como na Europa actual, toda a actividade humana parece estar reduzida a debates contabilísticos e os dogmas da economia ameaçam reger todas as políticas de todos os países, é fulcral que a cultura apareça no seu mais elevado grau de importância e de representação.

Uma outra razão é económica. Um Governo não é mais perdulário ou mais económico se tiver dez ou 20 ministros. Ter poucos ministros até pode implicar gastos muito mais avultados, se os mesmos não tiverem preparação para a execução das suas tarefas, se tiverem de se rodear de múltiplos secretários de Estado, assessores e directores gerais para suprir a incapacidade de resposta de um ministro com múltiplas e diferentes pastas. Ou seja, a economia de um Governo está na justeza da aplicação dos meios às necessidades da governação. Tudo o resto é populismo.

Uma outra razão decorre da avaliação internacional do país e do impacto negativo na comunidade internacional. Objectivamente, a "marca" Portugal hoje "vende" pouco e mal. As razões são sobejamente conhecidas. Há contudo uma área em que a criação feita em Portugal "vende" de uma forma particularmente positiva. Não tendo grandes monumentos nacionais que compitam com muitas maravilhas monumentais europeias, Portugal tem porém obras singulares na arquitectura e na escultura que constituem uma herança de que é preciso cuidar. Por outro lado, na criação contemporânea há áreas com impacto, reconhecimento internacional e prestígio que constituem receita para o país. Isso é um facto na arquitectura, no cinema, na música popular e no fado, no "software", na literatura, no pensamento. Sabemos desta singularidade da criação portuguesa e do seu impacto à escala mundial: dos filmes de Pedro Costa apresentados numa tournée nos EUA, de "O Meu querido mês de Agosto" de Miguel Gomes que fez programadores e críticos deslocarem-se a Lisboa para verem o filme, da Coreógrafa Vera Mantero que é hoje uma autora de culto e muitos , muitos mais. Ora, a difusão destas actividades precisa de ser facilitada, estimulada, dignificada; e isto só é possível se houver um Ministério com esta missão (e não um técnico numa situação subalterna) nas grandes disputas internacionais de influência política à escala de regiões culturais vastas e diversas.

Que é urgente uma reformulação do Ministério da Cultura, isso sim é verdade. É aliás, um imperativo. O Ministério da Cultura deverá abandonar o modelo que o formatou ao longo de todos estes anos, e até a sua inspiração francófona porque os tempos e o mundo são outros. Deve agilizar-se, profissionalizar culturalmente todos os seus funcionários, seleccionar os mais capazes, contribuir para a profissionalização de todo o sector, ser transparente nas decisões, autonomizar os seus instrumentos de política cultural (como os teatros nacionais e os museus), desburocratizar-se (os secretários de Estado sim, são dispensáveis, porque na maioria das vezes funcionam como a outra cabeça de uma hidra), aproximar-se dos cidadãos, apoiar os criadores que antes de mais também são cidadãos, organizar-se maioritariamente em agências com missões e tempos delimitados e específicos, ser claro no caderno de encargos que contratualiza com as câmaras municipais, os teatros independentes, os galeristas, as editoras. Trazer a política cultural para dentro da comunidade, em vez de a excluir. E assumir que é um ponto de uma rede internacional europeia de ministérios e de políticas culturais, para poder iniciar uma diplomacia cultural.

Espera-se pois que, se o PSD for Governo, assuma a cultura com a dignidade e o estatuto que este assunto de Estado merece, porque extinguir o Ministério da Cultura tornaria Pedro Passos Coelho muito semelhante a José Sócrates, que foi na história da democracia portuguesa o primeiro-ministro que mais desconsiderou a cultura. É um facto que, hoje, a gestão política da cultura exige não só talento político como uma invulgar preparação técnica e, desejavelmente, uma sólida formação intelectual. Mais uma razão para, a haver personalidades com este perfil na área do PSD, não as desaproveitar na categoria de secretário de Estado. E, para voltarmos à questão simbólica que é fulcral nesta matéria, era um bom sinal ouvir um discurso de reconhecimento e gratidão pela actividade cultural e depois ver o candidato a primeiro-ministro de quando em quando no cinema, numa exposição ou a comprar CD. E saber-se que, no recanto de sua casa e nos parcos tempos de repouso que tem, ele lê.

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