Fronteiras: o que separa não vem só no mapa

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Uma exposição na Gulbenkian mostra 180 fotografias e vídeos de fotógrafos e artistas africanos (com uma afro-americana à mistura). É a África contemporânea das migrações, das fronteiras herdadas da colonização, das viagens impossíveis e dos vistos improváveis

Duas gerações para uma fotografia. Duas mulheres que facilmente imaginamos mãe e filha posam para a objectiva de Arwa Abouon, deixando que o tecido estampado da sua roupa se confunda com o papel de parede, tornando impossível distinguir, de imediato, o contorno dos seus corpos. A fronteira que as separa é a do tempo ou, se olharmos para o lado e as confrontarmos com o pai e o filho que o outro díptico deste líbio retrata, a do género.

Na exposição que abriu na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, as "Fronteiras" não estão só nos mapas - estão também na cabeça, na legislação que restringe os direitos das mulheres, nas guerras que separam etnias e famílias, nas tradições que fazem de um albino um mau presságio.

"Tudo nesta fotografia parece certo", diz António Pinto Ribeiro, comissário de "Fronteiras", exposição que integra até 28 de Agosto o programa Próximo Futuro e que foi criada pela Bienal Africana de Fotografia de Bamako. "A composição, o tema do diálogo entre duas gerações de mulheres que vivem num país em que muitas vezes é duro ser mulher, a tensão que se adivinha antes e depois da fotografia."

Tensão é uma palavra crucial nesta exposição produzida no Mali que junta 180 fotografias e vídeos de mais de 50 artistas de 23 países africanos (mais uma afro-americana, Ayana Jackson), do Egipto à África do Sul, passando pelo Chade, o Sudão, a Costa do Marfim e o Burkina Faso. Imagens impressionantes de crianças que vivem debaixo de uma ponte na Nigéria ao lado de outras que registam o "glamour" das festas de Nairobi. Em comum os rostos, as pessoas. "A fotografia contemporânea africana é habitada, não está cheia de 'não-lugares' como a que vemos habitualmente nas galerias americanas e europeias", acrescenta Pinto Ribeiro, responsável pela montagem da exposição em Lisboa.

Michket Krifa, uma das comissárias dos Encontros de Bamako, não gosta de falar em "fotografia africana" porque teme que leve a generalizações erróneas, uma vez que o panorama varia muitíssimo de país para país, sendo os pólos clássicos de maior desenvolvimento da fotografia a África do Sul, Moçambique, a Nigéria, o Mali e o Egipto, e os emergentes a República Democrática do Congo, a Etiópia, a Tunísia, a Algéria e Marrocos. "Quisemos mostrar a diversidade de abordagens - documentais, jornalísticas, plásticas - à fronteira", explica ao Ípsilon via "email". "Mas hoje as temáticas são tratadas em África como em qualquer outro lugar devido à mundialização e às problemáticas sociais, ambientais e políticas."

Federica Angelucci, curadora de fotografia numa importante galeria da Cidade do Cabo, também prefere evitar criar um rótulo para definir a fotografia que se faz no continente. Diz que "a noção de africanidade é extremamente fluída e demasiado ilusória", mas reconhece que, na maioria das vezes, os africanos que se dedicam à fotografia estão muito interessados na condição humana, embora façam experiências com a abstracção e outras formas.

Angelucci, que estará em Lisboa para uma série de "workshops" e debates do Próximo Futuro (programa em www.gulbenkian.pt), viu "Fronteiras" em Bamako em 2009 e na Cidade do Cabo em 2010 e garante que a força da exposição está na abordagem conceptual ao tema e numa produção que rejeita clichés sem deixar de dar espaço à tradição (como os retratos de estúdio), mostrando ao mesmo tempo novas maneiras de olhar o mundo. "Os fotógrafos estão conscientes dos conflitos armados, das guerras étnicas, dos milhões de refugiados... É natural que o imaginário produzido seja permeável a tudo isto."

Para dar exemplos, esta especialista em fotografia contemporânea faz questão de falar do sudanês Ali Mohamed Osman e do nigeriano Uche Opkpa-Iroha - o da ponte que serve de casa a dezenas de crianças -, que lidam com os fluxos de circulação e a exclusão, a partir do território de comunidades marginais.

No trabalho destes fotógrafos e de muitos outros que expõe na sua galeria ou sobre os quais escreve, "as fronteiras entre uma abordagem documental, supostamente neutra, e a prática artística são muito difusas".

Um mapa escondido

Bouchra Khalili nasceu em 1975, em Casablanca, mas hoje, depois de um calvário burocrático, tem também nacionalidade francesa. É uma das 11 mulheres com obras expostas em "Fronteiras". Quando recebeu o "email" do  Ípsilon estava a trabalhar em Beirute, no Líbano, e foi a partir daí, a pensar nas exposições que faz em Inglaterra e nos Estados Unidos ou na próxima Bienal de Veneza, que falou da internacionalização, do projecto "Mapping Journey", da condição de mulher, africana e muçulmana, dos vídeos que lhe permitem denunciar a clandestinidade humilhante a que são obrigados milhares de migrantes. A obra de Khalili também vive nesta fronteira entre o documental e o artístico, mas a única coisa que parece interessar-lhe é o seu capital de denúncia e de mobilização.

Em "Mapping Journey" - "work in progress" que começou em 2008 e já a levou a Marselha, Ramallah, Bari, Roma e Barcelona -, a artista marroquina trabalha os fluxos migratórios a partir de histórias pessoais que aproximam os seus protagonistas de quem os ouve no contexto de um museu ou de uma galeria. Esta semana é impossível fazê-lo sem pensar nas 61 pessoas que terão morrido de fome e de sede numa embarcação que partiu de Trípoli com destino à ilha italiana de Lampedusa e que durante duas semanas vagueou pelo Mediterrâneo, com o conhecimento da NATO e das autoridades de Itália e de Malta.

As migrações clandestinas, realidade que para Khalili marca o dia-a-dia do sul do Mediterrâneo, da África e do Médio Oriente, são o fio condutor de "Mapping Journey", "um corpo de trabalhos que revela um mapa escondido, construído à volta de rotas ilegais".

Ao contrário de Angelucci e de Krifa, a jovem artista acredita que grande parte do que faz está enraizado no lugar - e no contexto - em que nasceu. "Quando se vem de onde eu venho - nasci em Marrocos, que ora está em África, ora está no mundo árabe - é difícil escapar às questões políticas. Um artista deste lado do mundo não pode fugir a esta complexidade."

Fronteiras intransponíveis

Kole Omotoso, escritor e crítico nigeriano de 68 anos que dá hoje uma das grandes lições do Próximo Futuro ("The Endangering Ambiguity of the Wabenzi Tribe: Next Futures Africa", às 14h30), diz que as migrações são apenas um dos muitos problemas do continente - é preciso não esquecer "o desperdício de matérias-primas, a fuga de cérebros, a falta de uma verdadeira educação, todo o tipo de discriminação, crimes contra as crianças do sexo feminino, a imbecilidade política, o constante mendigar de ajuda externa" - e que as fronteiras herdadas dos colonizadores e da conferência de Berlim de 1884-85 são hoje praticamente intransponíveis, separando famílias e grupos étnicos. "Vejam-se as fronteiras entre a Nigéria e a República do Benim que dividem os povos yoruba", exemplifica Omotoso, garantindo que, no entanto, a maior dificuldade que decorre das fronteiras africanas é o facto de tornarem as viagens no continente, a comunicação e a socialização "virtualmente impossíveis ou a preços proibitivos".

"Hoje as fronteiras criminalizam até a mais natural das actividades - levar alguns inhames e milho a familiares que vivem ali mesmo ao lado", diz, falando de outra fronteira imaterial, a da energia. "O fornecimento de electricidade na Nigéria é epiléptico. Em mais de 40 anos, nenhum governo - militar ou civil - conseguiu resolver o problema. Entretanto, toda a gente tem de comprar dois ou três geradores e as fábricas funcionam a 25 por cento da sua capacidade. Isto é uma loucura." Basta pensar que uns podem comprar geradores e outros não para traçarmos mais uma linha divisória.

Se há uma coisa em que todos concordam, é que para um artista africano é mais fácil viajar para a Europa e para os EUA do que para muitos países do continente. Ainda assim, poucos são os que se internacionalizam, apesar de o número ter vindo a aumentar, graças aos festivais e bienais de fotografia que vão surgindo, como os de Lagos e de Addis-Abeba.

"Muitos destes fotógrafos só expõem nos centros culturais estrangeiros dos seus países", diz Pinto Ribeiro, mas outros já entraram no circuito internacional, como Zac Ové e as suas fotografias dos rituais de Trindade e Tobago, Mohamed Bourouissa e a periferia de Paris, Lilia Benzid e o cemitério tunisino de Zaafrane em que as pedras tumulares parecem vestidas.

A questão da circulação é muito sensível, sublinha a curadora Federica Angelucci, porque "a prática dos fotógrafos contemporâneos é cada vez menos definida por um conjunto de atributos visuais, e cada vez mais pelos contextos de circulação do seu trabalho".

Depois de passar por Lagos, por Barcelona e pela Cidade do Cabo, "Fronteiras" mostra em Lisboa a memória que as guerras em África deixaram nos edifícios transformados em ruínas, os auto-retratos incómodos de Robert Mafuta, a ironia mordaz do camaronês Barthélémy Toguo, que denuncia os líderes africanos e a sua exploração irresponsável dos recursos naturais.

Depois de percorrer a exposição, ainda queremos saber mais sobre aquele pastor que desenhava sombras e passou a fotografá-las (Saïdou Dicko, Burkina Faso), sobre "Miss Divine" e a homossexualidade na África do Sul (Zanele Muholi), sobre o rapaz de Ramallah que tem de percorrer, clandestino, os 14 quilómetros que o separam da namorada que vive em Jersualém Leste, cartão postal da ocupação dos territórios palestinianos que Bouchra Khalili testemunhou.

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