O homem que perdeu tudo num banco está outra vez sem dinheiro

Foto
José Barios Fernandes fez fortuna no Canadá, hoje vive em Palmela Foto: Miguel Manso

Acha que "toda a gente" conhece a sua história - a história do homem que perdeu a fortuna na Caixa Económica Faialense. O processo-crime arrastou-se 18 anos nos tribunais. Pela morosidade, o Estado foi condenado a pagar-lhe mais de 500 mil euros, mas José Barios Fernandes diz que está outra vez sem dinheiro para pagar a renda. Está com Rendimento Social de Inserção (RSI). E isso quem é que sabe?

O homem alto, grisalho, convida a entrar no apartamento que alugou em Palmela. Pega numa capa repleta de recortes de jornal que foi coleccionando ao longo dos anos. "Milionário na miséria", lê-se, em letras garrafais. Não quer falar nas privações. "Estou interessado em falar em toda a aldrabice."

O Estado está a pagar-lhe a indemnização em prestações mensais. As prestações estão, desde Novembro, a ser penhoradas para pagar os honorários do advogado que o defendeu anos a fio.

A vontade de contar o presente é atropelada pelo vício de recontar o passado, pela sensação de injustiça que aquele homem de 74 anos nunca parou de remastigar. "Talvez os mais novos não se lembrem." Talvez os mais velhos também não - arriscamos, correndo o risco de ofendê-lo.

José pega noutra capa - a capa com os extractos e outros elementos da Caixa Económica Faialense. Senta-se no sofá e, com o dossier sobre os joelhos, desfia: "Comecei a depositar dinheiro a 7 de Abril de 1984. Entre Abril de 1984 e 1986, depositei o meu dinheiro todo."

Vivia para trabalhar. Sempre fora assim. Cresceu numa família pobre, numerosa. Começou a trabalhar na terra muito pequeno. E aos 14 anos trocou a agricultura pelos serviços. "Trabalhei num restaurante, numa cantina, num hotel. Na ilha Terceira havia um campo de golfe. Era dos americanos. Aprendi alguma coisa de inglês lá."

Em 1964, tentou a sorte nos Estados Unidos. No rescaldo da erupção do vulcão dos Capelinhos, os Estados Unidos aprovaram uma quota especial de imigração e, depois dela, uns ilhéus foram chamando outros. Entrou com visto de turista. Converteu-se num clandestino. Os serviços de imigração ordenaram-lhe que partisse. Cruzou a fronteira com o Canadá em 1965. "Estavam a pedir gente." Casou com uma canadense e com ela teve dois filhos sem deixar de viver para trabalhar. "Nem tinha tempo para dormir. Tirava três ou quatro horas para isso. Nem parava para comer. Quando queria comer qualquer coisa, passava pela cozinha."

Guarda um pequeno álbum com fotografias da empresa de catering. Pousa a capa para ir buscá-lo à estante de madeira, quase vazia. Folheia fotografias envelhecidas, que mostram carrinhas brancas com letras vermelhas. "Comecei com uma e tive mais de 20." Vendeu-as. Passou a fornecer comida para aquelas e para outras tantas. Sim, chegou a abastecer 40.

Cair no inferno

Parecia hipnotizado pelo trabalho. Um dia, foi espancado até os assaltantes se cansarem. O medo adensou-se. Era como se a vida lhe exigisse uma mudança. "Não queria investir no Canadá." Até para não beneficiar a mulher de quem se separara. Sonhava com o Algarve. Queria ter aulas de golfe, a sua grande paixão. "Quando pensei que ia viver no céu, caí no inferno."

Já nem lhe apetece falar na razão pela qual caiu na Caixa Económica Faialense. Havia um banco português em Toronto. Um bancário desaconselhou-o. Outro banco preparava-se para abrir uma agência. Era uma instituição açoriana, como José. E oferecia taxas de juro "muito altas".

Portugal atravessava uma época peculiar. O Fundo Monetário Internacional aterrara em 1983 para ficar até 1985. O país preparava-se para a Comunidade Económica Europeia - à qual aderiria em 1986. Portugal precisava desesperadamente de dinheiro. E José tinha dinheiro.

Primeiro, depositou a sua poupança - não fez transferências bancárias, entrou na agência com um saco de notas e entregou-as em troca de um papel. Depois, vendeu a empresa de catering e foi depositando o dinheiro que foi recebendo. Até somar 115 mil contos.

A Caixa Económica Faialense abrira balcões em Lisboa, em Nantes e em Toronto, apesar de a sua actividade legal estar limitada ao Faial. E através deles captava as poupanças de milhares de emigrantes, convencidos de que as estavam a transferir para Portugal. Em Dezembro de 1986, o Governo de Cavaco Silva mandou encerrar o banco. Integravam então a administração Américo Duque Neto (presidente), João Calado Garcia, João Vaz Serra de Moura (ex-ministro da Qualidade de Vida), José Macedo e Cunha (ex-gestor público), Luís Morales (ex-secretário de Estado do Trabalho), Álvaro Ramos e José Melo Alves.

Foi constituída uma comissão liquidatária. Os credores foram notificados. "Eu não fui. Sou de Santa Maria e lá era de Leiria!" Andava cá e lá, sem perceber o que se estava a passar. "Estava à espera de ser pago, como os outros. Não sabia que havia uma comissão."

Em Junho de 1989, ao jogar golfe em Setúbal, conheceu um conterrâneo com quem partilhou a sua história. E ele levou-o à Caixa Geral de Depósitos, que o encaminhou para o liquidatário, Carlos Ferreira da Cruz. "Não me quis aceitar como credor. Disse-me que era tarde demais, que o prazo tinha terminado. Se fosse correcto, dizia-me para ir à polícia."

Não era só o prazo. Nem era só a ilegalidade da dependência bancária. Só o primeiro depósito fora registado. O resto fora desviado para uma conta de Américo Neto. "Não tenho culpa disso. Lá por fazerem aldrabice, não posso perder o meu dinheiro!"

O primeiro defensor limitou-se a escrever umas cartas, desmotivado com a ideia de nunca vir a ser pago pelo esforço. Em 1993, Paulo Sternberg foi nomeado advogado oficioso de José. Estudou o processo e comoveu-se. "O processo estava na fase de inquérito. Ainda nem sequer havia acusação", recordaria, dias depois desta visita, via telefone.

Anos à espera de dinheiro

Enquanto o processo se arrastava nas Varas Criminais de Lisboa, José não conseguia retomar as rédeas da sua vida. Dormia numa carrinha, dependia da generosidade alheia para sobreviver. Certa ocasião, encontrou António Monteiro, o homem a quem entregara o seu dinheiro, num parque de estacionamento e disparou. Atingiu-o num braço. António morreu na sequência do ferimento e o empresário apanhou sete anos de prisão - cumpriu quatro.

Só em Outubro de 2000, 18 anos depois de José fazer o último depósito numa agência que por lei nunca existiu, Américo Neto foi condenado a cinco anos de prisão e a uma indemnização de 2,5 milhões de euros. A sentença deambulou quatro anos pelos tribunais superiores.

Em protesto contra a lentidão da justiça, José exigiu 550 mil euros ao Estado. Decorria 2003. Não podia continuar naquele desespero. Interpôs uma providência cautelar a solicitar o pagamento provisório. O Tribunal Central Administrativo viu ali o pior exemplo de retardamento da acção punitiva do Estado. E José passou a receber 1200 euros mensais - a verba seria deduzida ao montante que viesse a resultar da condenação definitiva do Estado.

Intentou acções contra a Caixa Económica Faialense, contra o Governo Regional dos Açores, contra o Banco de Portugal. No processo-crime ficara provado, por exemplo, que o Banco de Portugal sabia haver uma dependência ilegal no Canadá e até ponderou colocar anúncios para prevenir os emigrantes.

A Finangeste, uma empresa que se dedica à aquisição e recuperação de créditos, quis fazer um acordo com José. Oferecia-lhe 400 mil euros para ele esquecer os 2,5 milhões devidos por Américo Neto. José recusou. "Como é que eu ia aceitar 400 mil euros? Pagava as dívidas e ficava a chuchar no dedo."

O Tribunal Central Administrativo decidiu a favor de José. E a renúncia do Estado em contestar a decisão abriu uma nova fase na liquidação da sentença, que fixou em 60 mil euros os danos não patrimoniais sofridos e definiu como ponto de partida para a avaliação dos danos patrimoniais o rendimento do valor decorrente da venda do negócio que José tinha no Canadá.

Os juízes escolheram Setembro de 1991 como ponto de partida por considerarem cinco anos o prazo adequado para concluir o inquérito aberto pela falência da Caixa Económica Faialense. E isso obrigou a complexas contas, tendo em conta o número de anos, a evolução do câmbio e das taxas de juros.

Recebera 1200 euros entre Agosto de 2003 e Dezembro de 2006. Com o acordo feito com o Ministério Público em Outubro de 2006, o Estado pagar-lhe-ia 38 mil euros a 31 de Outubro e 300 mil euros a 31 de Janeiro; 162 mil euros em 81 prestações mensais de dois mil euros.

Paulo Sternberg quis receber algum dinheiro: "Era advogado oficioso no processo-crime em que ele é vítima. Paralelamente, propus-lhe várias acções. Ele não tinha dinheiro para me pagar. Pagaria, se conseguisse ganhar alguma acção que lhe permitisse ter meios de subsistência."

José afiança ter ficado surpreendido: "Ele nunca me explicou! Ele era meu advogado oficioso. Ele tinha de me ter perguntado se eu queria que ele fosse meu advogado particular. Ele não podia ser as duas coisas ao mesmo tempo."

O advogado acusa-o de ingratidão: "Primeiro, queria pagar. Depois, disse que pagava quando terminassem todas as acções. Isso podia demorar mais dez anos. Renunciei imediatamente a todas as acções. Depois, ele disse que estava convencido que não tinha de pagar, que era o Estado que pagava. Tivemos de ir para tribunal."

O Tribunal de Tavira condenou José a pagar 48.557 euros à sociedade de advogados - com custas e juros, o montante em dívida subiu para 60.115 euros. Desde Novembro, os dois mil euros que José recebe do Estado então a entrar na conta da sociedade de advogados.

Há coisas que podem ser penhoradas e coisas que não podem. Aquilo não é um salário nem uma pensão, embora funcione como tal. "É uma penhora sobre um direito ao crédito", sublinharia Paulo Sternberg. "Estão a penhorar o montante que ele nos deve. O que é que ele fez aos outros 400 ou 500 mil euros que já recebeu?"

José ouviu o argumento no tribunal: "Dizem que já tinha recebido tanto dinheiro que não precisava de receber mais." Durante 16 anos, multiplicou dívidas. "Vivi de dinheiro emprestado." E já tinha algumas antes de tudo acontecer. "A maior parte da minha família estava a trabalhar para mim. Sabiam que recebi dinheiro. O que é que eu ia fazer? Acalmá-los. Eles também ficaram anos à espera do dinheiro."

O advogado não se comove: "Ficou outra vez no zero?! Isso é falso. Durante muito tempo, vinha ao meu escritório todos os dias. Eu sei que o sofrimento leva as pessoas a ficarem alteradas. Sofreu muito, mas a vida deu-lhe uma oportunidade para se refazer. Aquela acção devia dar-lhe esperança de ganhar outras. Não queria pagar a quem esteve anos a lutar por ele?"

Um homem só

José não nega ter passado incontáveis horas com Paulo Sternberg. Andava tão triste que, a certa altura, até perdeu a vontade de viver: "Cheguei a um ponto que falava com o advogado e chorava, chorava. Falava e no fim não me lembrava do que tinha dito. Resolvi gravar as conversas para ouvir quando estivesse mais calmo."

Tem mais vocabulário em inglês do que em português. Em cima da secretária, ao lado do portátil, repousa um dicionário. "Não me lembro dele falar comigo em honorários. Nem sabia o que queria dizer honorários. Às vezes, as pessoas estão a falar comigo e eu sei lá o que estão a dizer. Só fiz a 4.ª classe."

Acha que foi mal representado: "Eu disse-lhe para meter uma acção contra a comissão liquidatária em 1993, ele só fez isso em 2005. Já era tarde. Se tivesse feito isso logo, já teria recebido o meu dinheiro. Ele dizia que sabia o que estava a fazer. Pôs uma acção contra o presidente da Caixa. De que serviu ganhar a acção se ele não tinha nada em nome dele?"

O advogado discorda: "Se tivesse ido contra a Caixa, teria recebido zero." Preferiu incidir sobre os indivíduos que tinham tido intervenção directa e fazer pressão sobre o Estado, sobre o Banco de Portugal. Um deles, o gerente, morreu. Outro, o administrador, cumpriu dois anos de prisão (beneficiou de vários perdões). Nunca pagou a indemnização.

José guarda horas de gravação com peças televisivas a ele dedicadas. Mandou uma cópia em CD ao tribunal que o condenou a pagar honorários. Mandou-lhe isso e uma declaração em que Sternberg figura como advogado oficioso. Acha que foi "outra vez" mal representado. Tantos advogados já o representaram depois daquele e com nenhum criou um laço de confiança.

Américo Neto não lhe levou só o dinheiro. A sua vida parece ter sido engolida pelo que lhe aconteceu há 25 anos. É um homem só, apesar de no ecrã do computador ter uma fotografia dos filhos e dos netos. Nunca aprofundou a relação. "Os meus filhos não me conhecem bem." Via-os pouco quando eram pequenos: passavam por ele quando partiam ou chegavam da escola. Via-os menos após a separação. E ainda menos após a perda da fortuna. É o golfe que determina os lugares que escolhe para morar.

Não tem reforma. "Tinha o que é meu, para que ia descontar?" Sem qualquer fonte de rendimento declarada em Portugal, recorreu à Segurança Social. Agora, recebe 189,52 euros de RSI, o valor máximo previsto para um adulto, sozinho, em situação de pobreza extrema. Recebe-o desde Dezembro. Não espera viver com aquilo para sempre. Pediu ao tribunal para só lhe penhorarem um terço da mensalidade. Está à espera. Outra vez.

Sugerir correcção
Comentar