Turista acidental

Um livro irregular e estranhamente "naïve" - apesar das subtilezas

Paul Theroux está intimamente ligado à literatura de viagens desde que, em 1975, contribuiu para um ressurgimento do género com "The Great Railway Bazaar", o relato de uma travessia da Ásia em comboio que o empolgou o suficiente para não mais parar. A aventura custou-lhe o primeiro casamento mas não o impediu de continuar a produzir inúmeras obras, onde os seus temas preferidos, a aventura, o sexo e a traição, fazem regularmente a sua aparição. À semelhança de autores como Jonathan Raban e Pico Iyer, introduziu nas suas narrativas curiosidades locais, incidentes excitantes e apontamentos autobiográficos, dando-lhes um carácter intimista e humano.

No entanto, tem-se tornado cada vez mais difícil explorar este tipo de escrita quando o turismo se tornou um negócio de massas e a oferta de "exotismo" e de sensações fortes está à distância de uma busca no Google. Em "Mão Morta. Um Crime em Calcutá", Theroux fez um esforço suplementar para "apimentar" um relato sobre uma cidade pouco apelativa - e talvez por isso ainda guardadora de alguns segredos - criando uma trama com as características de um "policial".Jerry Delfont, um escritor de viagens, debate-se com falta de assunto, literalmente "encalhado" na populosa e sufocante Calcutá, "cidade de deformidades". Ansioso por uma história, incomodado com o calor, a confusão, o fedor e a falta de propósito numa metrópole onde milhões se limitam a tentar sobreviver, dia após dia, este autor de vagos artigos em não menos vagas publicações, este "andarilho evasivo e disperso" que profere palestras nos centros culturais americanos à roda do mundo, recebe uma estranha carta, na qual uma misteriosa mulher lhe pede que descubra o autor de um crime. Entediado mas subitamente curioso, o narrador decide esclarecer a bizarra história - uma criança que aparece morta no quarto de um hotel miserável - por pressentir que poderá ser uma forma de dar vida à sua "mão morta", de quebrar o bloqueio que o impede de escrever. A autora da carta, com o sugestivo nome de Merrill Unger, é dada a acções filantrópicas e está imersa nas variegadas formas da cultura indiana, dedicando-se a gerir um orfanato onde recolhe crianças de rua. Entrada em anos mas fascinante - muito rica e especialista em sexo tântrico, dois atributos que certamente contribuem para a atracção - seduz completamente o pobre escritor que se torna uma espécie de "escravo", dependendo dela, física e psicologicamente.

Theroux deixa a charada "policial" elanguescer, entretendo-se a criar personagens como um patologista indiano correctíssimo, uma jovem estudante e bailarina agarrada às tradições do seu país - mas desejosa de lhes fugir - e um adido consular que conhece toda a gente e que até arranja um encontro de Delfont com um escritor chamado... Paul Theroux. A história (cómica) vai-se tornando cada vez mais negra enquanto o pobre Jerry, estafado com tanto sexo, descobre que a senhora Unger - o estereótipo da ocidental que deseja tornar-se "nativa", com os seus saris, as suas tatuagens de henna, a sua aculturação religiosa e social - é adepta de Kali, a deusa que reclama sacrifícios sangrentos.

Theroux tenta, neste romance, conciliar dois propósitos: admoestar os "ocidentais" que não percebem a Índia e a vêm à luz de estereótipos eternizados por "hippies", por idealistas perversos, pelas agências de viagens e por Bollywood; e apontar um caminho para enfrentar e aceitar um país/continente com todas as suas bizarrias, contrastes e monstruosidades. Mas não é claro se teve a intenção (louvável) de denunciar práticas racistas e atentatórias dos direitos humanos ou se resolveu divertir-se com uma história de humor negro sobre um pobre diabo de meia idade com fantasias eróticas que acaba por ficar exactamente na mesma, isto é, "com a cabeça vazia e a mão morta". É possível especular, também, que esta narrativa funciona como mais um ajuste de contas com o inimigo figadal de Theroux, o ex-amigo e mentor V.S. Naipaul, que ele considera um sinistro "racista snob" como demonstrou na devastadora biografia "Sir Vidia Shadow". (Naipaul chamou a Theroux um " tipo banal, escrevinhador de brochuras para turistas das classes baixas"). O desfecho deste mistério - e quem se importará com um crime, "mais um", numa cidade como esta? - não será uma surpresa, mas coloca questões sobre as intenções do autor: revelar o horror de Calcutá, com as ruas pejadas de aleijados, de crianças abandonadas e de lixo? Expor o masoquismo de certas pessoas como Madre Teresa - que ele não se coíbe de criticar - que aproveitam a miséria para uma qualquer redenção pessoal? Mostrar a ingenuidade dos "turistas" numa Índia que nunca se revela? Theroux é um céptico em relação ao "milagre indiano", afirmando que, "pouco mudou excepto o aumento contínuo da população, 1.3 biliões de pessoas impossíveis de alimentar, de conter, de empregar que certamente não estão em condições de dizer, 'agora somos modernos'." Ao criticar duramente Bono, Brad Pitt e Angelina Jolie, a quem chamou "mitomaníacos", por achar que eles utilizam as respectivas obras de caridade, em prol da fama pessoal, parece querer demonstrar que a maior parte das pessoas não percebe nada sobre culturas diferentes, mantendo uma postura colonialista, preconceituosa e, evidentemente, ignorante.

"Mão Morta" oscila entre o cómico, o bizarro e o trágico mas Theroux não é Charles Dickens e Calcutá não é Londres. Apesar das subtilezas que definem o fosso entre culturas e a linguagem dos personagens, que os estigmatiza, revelando fraquezas e preconceitos, tal não chega para afastar um certo "kitsch" neste livro irregular e estranhamente "naïve".

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