O futebol em Portugal não é para quem quer, é para quem pode

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Acompanhar um clube nas ligas nacionais fica caro Foto: Lionel Balteiro/arquivo

Um adepto do Benfica gastou, em Fevereiro, no mínimo, 164 euros para seguir seis jogos da sua equipa. Na II Divisão, os números podem ser similares.

Já motivou muitos debates, várias teorias e algumas propostas. Mas num país com fraca cultura desportiva onde o futebol domina, quase em absoluto, as preferências dos adeptos, como explicar que jogos da Liga principal tenham menos de mil espectadores? O PÚBLICO escolheu quatro equipas dos campeonatos principais e duas das competições não-profissionais e fez contas ao orçamento necessário para um adepto assistir nos estádios aos jogos da equipa durante um mês. O resultado final não surpreende: em Portugal, ir ao futebol não é para quem quer, apenas para quem pode.

O tempo é de crise, as medidas de austeridade vão continuar a surgir e as despesas das famílias não param de crescer, reduzindo cada vez mais a folga orçamental para gastos extras. Jorge Silvério, provedor do adepto da Liga, cita dados do INE de 2006, segundo os quais só 5,6 por cento do orçamento das famílias eram dedicados ao lazer: cerca de "1000 euros/ano por agregado familiar".

Mas afinal quanto custa ir ao futebol em Portugal? Pelas contas do PÚBLICO, um adepto "poupadinho" do Benfica gastou, em Fevereiro, 164 euros para acompanhar seis jogos da equipa, isto partindo do princípio de que é sócio, que escolheu sempre os ingressos mais baratos, o meio de transporte mais económico e que prescindiu de ir à Alemanha, assistir ao jogo com o Estugarda (só a viagem e o hotel custavam 950 euros).

Estes valores estão em linha com as estimativas de Gonçalo Vicente, de 36 anos, um adepto habitual nos jogos do Benfica. "Vou a todos os jogos na Luz e a uns 15 fora, entre campeonato e taças", contou ao PÚBLICO este empresário de Lisboa, que diz gastar cerca de 1500 a 1700 euros para acompanhar o Benfica - esta despesa só com o futebol é superior à média estimada pelo INE para todas as actividades de lazer.

Desporto de elites

É por isso que Gonçalo não hesita em considerar os bilhetes "caros" (em Setúbal, havia ingressos de 55 euros). Ir ao futebol significa também abdicar de outras coisas: os 164 euros para ver seis jogos dariam para ir ao cinema mais de 25 vezes ou até para pagar uma prestação de um carro.

No Norte do país, a diferença não é grande. Sócio do V. Guimarães desde que nasceu, Carlos Ribeiro tem 26 anos e "vai a quase todos os jogos. Em casa e fora". Licenciado em Biologia e investigador na área das Ciências Biomédicas, Carlos, em Fevereiro, apenas não viu o jogo da sua equipa em Leiria, por "estar no estrangeiro", mas foi ao Estádio da Luz. Viajou em viatura própria com dois amigos, "por ser mais confortável" e conseguir "definir os próprios horários". "Por alto", o jogo custou "uns 80 euros" a cada.

Este adepto não tem dúvidas em apontar como "principal factor para as baixas assistências" o "preço dos bilhetes" e deixa um apelo: "É preciso que os clubes façam algo. Era do interesse de todos que o futebol voltasse a ser um desporto da família, mas para isso era necessário baixar muito o preço dos bilhetes. O futebol é cada vez mais um desporto de elites." Para assistir aos cinco jogos do V. Guimarães, um adepto precisou de gastar, no mínimo, 109 euros - este valor multiplica-se caso mais pessoas do agregado familiar vão aos jogos.

Pagar e não ter condições

O luxo que se tem tornado, cada vez mais, ver um jogo de futebol no estádio não se restringe às competições da LPFP. Nos campeonatos não-profissionais, os gastos não são tão inferiores como se poderia pensar. Francisco Plácido tem 19 anos e é um indefectível boavisteiro. Apesar de o Boavista ter caído para a II Divisão B, Francisco continua a acompanhar o clube para todo o lado, mas os "sacrifícios são muitos" porque "os clubes, contra o Boavista, aproveitam-se e colocam sempre os bilhetes no preço máximo". Estudante na Faculdade Ciências da Universidade do Porto, tenta gerir a mesada da melhor forma e para ver o Boavista fora deixou de pagar as quotas de sócio do clube. Em casa vê os jogos através de convites.

Apesar da "paixão pelo Boavista", Francisco enfrenta agora uma realidade bem diferente em "campos sem condições nenhumas". "No ano passado, no Padroense, uma senhora sentiu-se mal e nem apoio médico existia. Este ano, na Pampilhosa, não havia bancadas e paguei nove euros para ver o jogo de pé agarrado a uma barra de metal. Muitos estádios nem casas de banho têm."

Francisco, que, nos jogos fora, gasta em média entre 25 e 30 euros, lamenta o afastamento de vários amigos do futebol porque "um bilhete de cinema custa quatro euros e uma refeição num restaurante fast food fica por cinco. Isso é o preço para ver o futebol em campos sem condições. É preciso gostar-se muito do clube para continuar a ir aos estádios". Um sócio do Boavista precisou de gastar, pelo menos, 97 euros para ver os quatro desafios da equipa no mês passado.


Média de espectadores em Portugal abaixo de outros países europeus

Horários e falta de qualidade dos jogos também afastam pessoas dos estádios

Há muitas razões para uma pessoa assistir ou não a um jogo de futebol ao vivo, desde os preços dos bilhetes às condições dos estádios, passando pelo sucesso desportivo da equipa preferida ou pelas condições dos estádios. Os especialistas identificaram 32 factores que, teoricamente, influenciam a ida ao estádio, mas em Portugal os preços dos bilhetes e a falta de espectacularidade dos jogos são as duas razões principais para a diminuição de espectadores, aponta Daniel Sá, professor do Instituto Português de Administração e Marketing (IPAM).

“Temos muitos jogos desinteressantes”, diz Daniel Sá, falando, por um lado, da falta de competitividade (como haver poucos candidatos ao título) e, por outro, da “falta de espectacularidade dos jogos”.

A par da questão dos preços dos bilhetes, a decisão de não ir ao estádio surge também associada aos horários dos jogos, muitas vezes deslocados para horas tardias. Este foi, aliás, o principal motivo de queixas enviadas ao provedor durante a época passada. “As pessoas queixam-se de os jogos serem muito tarde quando no dia seguinte for dia de trabalho. Por exemplo, se um adepto do FC Porto for a Olhão ou a Portimão, chega a casa de madrugada.”

Daniel Sá dá ainda o exemplo do recente Sporting-Benfica, que foi presenciado por 36 mil pessoas numa segunda-feira à noite. “Se fosse sábado ou domingo, teria certamente mais pessoas”, defende.

A média de espectadores na Liga portuguesa ficou-se pelas 10.901 pessoas em 2009-10, bem atrás do que acontece nas principais ligas: Alemanha (42.500), Inglaterra (34.151), Espanha (28.332), Itália (24.492), França (19.775). Campeonatos da dimensão de Portugal, como Holanda (19.608) ou Escócia (13.920), também ficam à frente de Portugal. Na presente época, os números da Liga apontam para uma descida de quatro por cento face à época passada na I Liga. Uma descida a que, além da crise económica, não é alheia a perda de espectadores do Benfica. Os resultados menos conseguidos pela equipa da Luz no início da época tiveram impacto nas assistências do clube que mais gente tem levado aos estádios: a média na Luz baixou de 50 mil para 40 mil pessoas por jogo.

Nesta discussão sobre o que afasta os adeptos dos estádios, as transmissões televisivas, as condições dos estádios, o sucesso desportivo da equipa que se apoia, o rendimento disponível, o adversário, a ligação sentimental ao clube são aspectos a ter em conta. Mas Daniel Sá salienta outro factor com grande impacto em Portugal: o discurso negativo à volta do futebol. E este aspecto, tal como a qualidade dos jogos, é “cultural e difícil de alterar”.
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