PÚBLICO antecipa três excertos de “Jesus de Nazaré”

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Bento XVI Alessia Pierdomenico/Reuters

Três excertos do volume 2 de "Jesus de Nazaré" em pré-publicação.

1. O mistério do traidor

O trecho do lava-pés coloca-nos perante duas formas diversas de reacção do homem a este dom: a de Judas e a de Pedro. Imediatamente depois de ter aludido ao exemplo, Jesus começa a falar do caso de Judas. A este propósito, João refere-nos que Jesus Se sentiu profundamente abalado e declarou: «Em verdade, em verdade vos digo que um de vós Me há-de entregar» (13, 21).

Três vezes fala João da «perturbação» de Jesus: junto do sepulcro de Lázaro (cf. 11, 33.38); no «Domingo de Ramos», depois da palavra sobre o grão de trigo que morre, numa cena que lembra de perto a hora do monte das Oliveiras (cf. 12, 24-27); e, por último, aqui.

São momentos em que Jesus Se encontra com a majestade da morte e é tocado pelo poder das trevas; poder este que é sua tarefa combater e vencer. Voltaremos a esta «perturbação» da alma de Jesus, quando reflectirmos sobre a noite do monte das Oliveiras.

Tornemos ao nosso texto. O anúncio da traição suscita, compreensivelmente, agitação e, ao mesmo tempo, curiosidade entre os discípulos. «Um dos discípulos, aquele que Jesus amava, estava à mesa reclinado no seu peito. Simão Pedro fez-lhe sinal para que lhe perguntasse a quem se referia. Então ele, apoiando-se naturalmente sobre o peito de Jesus, perguntou: “Senhor, quem é?”. Jesus respondeu: “É aquele a quem Eu der o bocado de pão ensopado”» (13, 23-26).

Para a compreensão deste texto, é preciso antes de mais ter em conta o facto de estar prescrito, para a ceia pascal, que se estivesse reclinado à mesa. Charles K. Barrett explica assim o primeiro versículo agora citado: «Os participantes numa ceia estavam reclinados sobre a sua esquerda; o braço esquerdo servia para sustentar o corpo; o direito ficava livre para ser usado. Deste modo, o discípulo à direita de Jesus tinha a cabeça imediatamente diante de Jesus e, por conseguinte, podia-se dizer que estava reclinado junto do seu peito. Obviamente, podia falar confidencialmente com Jesus, mas o seu lugar não era o de maior honra; este situava-se à esquerda do chefe da casa. Seja como for, o lugar ocupado pelo discípulo amado era o lugar de um amigo íntimo»; Barrett observa, neste contexto, que existe uma descrição paralela em Plínio (p. 437).

Tal como aparece transcrita aqui, a resposta de Jesus é totalmente clara. E, todavia, o evangelista anota que os discípulos não compreenderam a quem Ele Se referia. Por isso podemos supor que João, repensando no caso, tenha conferido à resposta uma evidência que, então, não tivera para os presentes. O versículo 18 coloca-nos na pista justa; aí, Jesus diz: «[…] há-de cumprir-se a Escritura: “Aquele que come do meu pão levantou contra Mim o calcanhar”» (cf. Sl 41, 10; Sl 55, 14).

Este é o estilo característico de Jesus falar: com palavras da Escritura, alude ao seu destino, inserindo-o ao mesmo tempo na lógica de Deus, na lógica da história da salvação.

Mais tarde, estas palavras tornam-se completamente claras; fica claro que a Escritura descreve verdadeiramente o seu caminho, mas naquela hora permanece o enigma. Ao princípio, apenas se deduz que aquele que há-de atraiçoar Jesus é um dos convivas; torna-se evidente que o Senhor tem de sofrer até ao fim e mesmo nos detalhes o destino de sofrimento do justo, um destino que se manifesta de variados modos sobretudo nos Salmos. Jesus tem de experimentar a incompreensão, a infidelidade até no âmbito do círculo mais íntimo dos amigos e assim «cumprir a Escritura». Ele revela-Se como o verdadeiro sujeito dos Salmos, como o «David» de quem provêm e por meio de quem adquirem sentido. Quando escolheu, em lugar do termo habitualmente usado na

Bíblia grega para dizer «comer», a palavra tro@gein usada por Jesus, no seu grande discurso sobre o pão, para indicar o acto de «comer» o seu Corpo e o seu Sangue, isto é, receber o Sacramento Eucarístico (cf. Jo 6, 54-58), João acrescentou uma nova dimensão à palavra do salmo retomada por Jesus como profecia sobre o seu próprio caminho. Assim, a palavra do salmo lança, de antemão, a sua sombra sobre a Igreja que celebra a Eucaristia no tempo do evangelista como em todos os tempos: com a traição de Judas, não terminou o sofrimento pela deslealdade. «Até o meu amigo íntimo, em quem eu confiava e que comia do meu pão, até ele se levantou contra mim» (Sl 41, 10). A ruptura da amizade chega mesmo à comunidade sacramental da Igreja, onde há sempre de novo pessoas que partilham «o seu pão» e O atraiçoam.

O sofrimento de Jesus, a sua agonia, continua até ao fim do mundo, escreveu Pascal, baseando-se em tais considerações (cf. Pensées, VII, 553). Podemos exprimi-lo também a partir do ponto de vista oposto: naquela hora, Jesus carregou a traição de todos os tempos, o sofrimento que deriva de ser atraiçoado em cada tempo, suportando assim até ao fundo a miséria da história.

João não nos oferece nenhuma interpretação psicológica do comportamento de Judas; o único ponto de referência que nos dá é a alusão ao facto de que Judas, como tesoureiro do grupo dos discípulos, teria roubado o seu dinheiro (cf. 12, 6). No contexto que nos interessa, o evangelista limita-se a dizer laconicamente: «E, logo após o bocado, entrou nele Satanás» (13, 27).

Para João, aquilo que aconteceu a Judas já não é explicável psicologicamente. Acabou sob o domínio de outrem: quem rompe a amizade com Jesus, quem se recusa a carregar o seu «jugo suave» não chega à liberdade, não se torna livre, antes pelo contrário torna-se escravo de outras potências; ou mesmo: o facto de atraiçoar essa amizade já resulta da intervenção de outro poder, ao qual se abriu.

Entretanto a luz, vinda de Jesus, que caíra na alma de Judas não se tinha apagado totalmente. Há um primeiro passo rumo à conversão: «Pequei» – diz ele aos seus mandantes. Procura salvar Jesus, devolvendo o dinheiro (cf. Mt 27, 3-5). Tudo o que de grande e puro recebera de Jesus permanecia gravado na sua alma; não podia esquecê-lo.

A segunda tragédia dele, depois da da traição, é já não conseguir acreditar num perdão. O seu arrependimento torna-se desespero. Já só se vê a si mesmo e às suas trevas, já não vê a luz de Jesus – aquela luz que pode iluminar e vencer as próprias trevas. Deste modo faz-nos ver a forma errada do arrependimento: um arrependimento que já não consegue esperar, mas só vê a própria obscuridade, é destrutivo, não é um verdadeiro arrependimento. Faz parte do justo arrependimento a certeza da esperança – uma certeza que nasce da fé no poder maior da Luz que Se fez carne em Jesus.

João conclui dramaticamente o trecho sobre Judas com estas palavras: «[Judas] tendo tomado o bocado de pão, saiu logo. Fazia-se noite» (13, 30). Judas vai para fora num sentido mais profundo: entra na noite, vai-se embora da luz para a escuridão. O «poder das trevas» apoderou-se dele (cf. Jo 3, 19; Lc 22, 53).

2. A data da Última Ceia

O problema da datação da Última Ceia de Jesus assenta no contraste, a este respeito, entre os Evangelhos sinópticos, de um lado, e o Evangelho de João, do outro. Marcos, que Mateus e Lucas seguem no essencial, oferece a este propósito uma datação precisa. «No primeiro dia dos Ázimos, quando se imolava a Páscoa, os discípulos perguntaram-Lhe: “Onde queres que façamos os preparativos para comeres a Páscoa?” […] Chegada a noite, Jesus foi com os Doze» (Mc 14, 12.17).

A tarde do primeiro dia dos Ázimos, quando no templo se imolavam os cordeiros pascais, é a vigília da Páscoa. Segundo a cronologia dos sinópticos trata-se de uma quinta-feira.

Depois do ocaso, começava a Páscoa, e foi então consumida a ceia pascal por Jesus com os seus discípulos, bem como por todos os peregrinos idos a Jerusalém. Na noite de quinta para sexta-feira – sempre segundo a cronologia sinóptica –, Jesus foi preso e apresentado ao tribunal, na manhã de sexta-feira foi condenado à morte por Pilatos e sucessivamente, «pela hora tércia» (cerca das nove da manhã), foi crucificado. A morte de Jesus deu-se à hora nona (cerca das três horas da tarde). «Ao cair da tarde, visto ser a Preparação, isto é, véspera do sábado, José de Arimateia […] foi corajosamente procurar Pilatos e pediu-lhe o corpo de Jesus» (Mc 15, 42-43). A sepultura devia fazer-se ainda antes do ocaso porque depois começava o sábado. O sábado é o dia do repouso sepulcral de Jesus. A ressurreição tem lugar na manhã do «primeiro dia da semana», no domingo.

Esta cronologia vê-se comprometida pelo seguinte problema: o processo e a crucifixão de Jesus teriam acontecido na festa da Páscoa, que naquele ano calhava na sexta-feira. É verdade que muitos estudiosos procuraram demonstrar que o processo e a crucifixão eram compatíveis com as prescrições da Páscoa. Mas, não obstante toda a erudição, resta problemático que, naquela festa muito importante para os judeus, fossem admissíveis e possíveis o processo diante de Pilatos e a crucifixão. Aliás, esta hipótese vê-se obstaculizada também por uma informação fornecida por Marcos. Afirma ele que, dois dias antes da festa dos Ázimos, os sumos sacerdotes e os escribas procuravam maneira de se apoderarem de Jesus à má-fé para O matarem, mas a propósito declaravam: «Durante a festa não, para que o povo não se revolte» (14, 2; cf. v. 1). Segundo a cronologia sinóptica, porém, a execução capital de Jesus terá de facto tido lugar precisamente no dia da festa.

Vejamos agora a cronologia joanina. João tem o cuidado de não apresentar a Última Ceia como ceia pascal. Pelo contrário, as autoridades judaicas, que levam Jesus ao tribunal de Pilatos, evitam entrar no pretório «para não se contaminarem e poderem celebrar a Páscoa» (18, 28). A Páscoa começa apenas ao entardecer; durante o processo, ainda se está a pensar na ceia pascal; processo e crucifixão têm lugar no dia antes da Páscoa, na parasceve, a «preparação», e não na própria festa. Naquele ano, portanto, a Páscoa estende-se do ocaso de sexta-feira até ao ocaso de sábado, e não do entardecer de quinta-feira até ao entardecer de sexta-feira.

Quanto ao resto, o desenrolar dos acontecimentos permanece o mesmo. Na tarde de quinta-feira, a Última Ceia de Jesus com os discípulos, que não é porém uma ceia pascal; na sexta-feira, a vigília da festa, e não a própria festa, o processo e a execução capital; no sábado, o repouso no sepulcro; no domingo, a ressurreição. Com esta cronologia, Jesus morre na hora em que são imolados no templo os cordeiros pascais. Morre como o verdadeiro Cordeiro, que estava apenas preanunciado nos cordeiros.

Esta coincidência, teologicamente importante, de Jesus morrer contemporaneamente com a imolação dos cordeiros pascais tem levado muitos estudiosos a desmerecerem a versão joanina como cronologia teológica. João teria mudado a cronologia para construir esta coincidência teológica, que todavia no Evangelho não é explicitamente afirmada. Mas, hoje, vai-se vendo de maneira cada vez mais clara que a cronologia joanina é historicamente mais provável do que a sinóptica, visto que – como se disse – processo e execução capital no dia da festa parecem pouco concebíveis. Por outro lado, a Última Ceia de Jesus aparece tão estreitamente ligada à tradição da Páscoa que a negação do seu carácter pascal redunda problemática.

Por isso desde há muito que se fazem tentativas para conciliar as duas cronologias. A mais importante e, em vários dos seus pormenores, fascinante de chegar a uma compatibilidade entre as duas tradições provém da estudiosa francesa Annie Jaubert, que desde 1953 tem vindo a desenvolver a sua tese numa série de publicações. Dado que aqui não devemos entrar nos detalhes da sua proposta, limitamo-nos ao essencial. A senhora Jaubert baseia-se principalmente em dois textos antigos que parecem apontar para uma solução do problema. O primeiro é a indicação de um calendário sacerdotal antigo, presente no Livro dos Jubileus, que foi redigido em língua hebraica na segunda metade do século II antes de Cristo. Este calendário não toma em consideração a translação da Lua, prevendo um ano de 364 dias, dividido em quatro estações de três meses, dois dos quais têm 30 dias e o outro 31. Cada trimestre, sempre com 91 dias, contém exactamente 13 semanas, e cada ano 52 semanas. Consequentemente, as festas litúrgicas de cada ano seriam sempre no mesmo dia da semana. Isto significa que, no caso da Páscoa, o 15 de Nisan seria sempre à quarta-feira, sendo a ceia pascal consumada depois do ocaso na noite de terça-feira. Jaubert defende que Jesus terá celebrado a Páscoa segundo este calendário, isto é, na terça-feira à noite, e sido preso nessa noite que dá para quarta-feira.

Deste modo, a estudiosa vê resolvidos dois problemas: por um lado, Jesus terá celebrado uma verdadeira ceia pascal, como referem os sinópticos; por outro, João tem razão em que as autoridades judaicas, atendo-se ao seu próprio calendário, celebraram a Páscoa só depois do processo de Jesus; e, por conseguinte, Jesus terá sido justiçado na vigília da verdadeira Páscoa e não no próprio dia da festa. Assim a tradição sinóptica e a joanina apresentam-se igualmente certas com base na diferença que há entre dois calendários diversos. A segunda vantagem sublinhada por Annie Jaubert mostra, simultaneamente, o ponto fraco desta tentativa de encontrar uma solução.

Observa a estudiosa francesa que as cronologias referidas (nos sinópticos e em João) têm de conjugar uma série de acontecimentos no reduzido espaço de poucas horas: o interrogatório na presença do Sinédrio, a transferência para Pilatos, o sonho da mulher de Pilatos, o envio a Herodes, o regresso a Pilatos, a flagelação, a condenação à morte, a via crucis e a crucifixão. Colocar tudo isto num arco de poucas horas parece – segundo Jaubert – quase impossível. A este propósito, a sua solução proporciona um espaço temporal que vai da noite entre terça-feira e quarta-feira até à manhã de sexta-feira.

Neste contexto, a estudiosa mostra que, em Marcos, nos dias de «Domingo de Ramos», segunda-feira, terça-feira e quarta-feira, existe uma sequência concreta dos acontecimentos, mas depois se salta directamente para a ceia pascal. Por conseguinte, segundo a datação referida, ficariam dois dias sobre os quais nada se refere. Por fim, recorda Jaubert que, deste modo, teria podido funcionar o projecto das autoridades judaicas de matar Jesus ainda antes da festa. Mas Pilatos, com a sua titubeação, teria depois adiado a crucifixão até sexta-feira.

No entanto, contra a mudança da data da Última Ceia de quinta para terça-feira fala a antiga tradição da quinta-feira, que em todo o caso encontramos claramente já no século II. A isto objecta a senhora Jaubert citando o segundo texto sobre o qual assenta a sua tese: trata-se da chamada Didascália dos Apóstolos, um escrito do início do século III que fixa a data da Ceia de Jesus na terça-feira. A estudiosa procura demonstrar que este livro terá recolhido uma tradição antiga, cujos vestígios poderão ser encontrados também noutros textos.

A isto, porém, é preciso responder que os vestígios da tradição encontrados são demasiado frágeis para poderem convencer. A outra dificuldade consiste no facto de ser pouco verosímil o uso, por parte de Jesus, de um calendário difundido principalmente em Qumrân. Nas grandes festas, Jesus frequentava o templo. E, embora tenha predito o seu fim confirmando-o com um acto simbólico dramático, Ele seguiu o calendário judaico das festividades, como mostra sobretudo o Evangelho de João. Poder-se-á, sem dúvida, admitir com a estudiosa francesa que o Calendário dos Jubileus não estava estritamente confinado a Qumrân e aos Essénios. Mas isto não basta para poder fazê-lo valer para a Páscoa de Jesus. Assim se explica que a tese, à primeira vista fascinante, de Annie Jaubert seja rejeitada pela maioria dos exegetas.

Ilustrei esta tese de maneira particularmente detalhada porque ela permite imaginar algo da multiplicidade e da complexidade do mundo judaico no tempo de Jesus: um mundo que, não obstante o considerável aumento dos nossos conhecimentos das fontes, podemos reconstituir apenas de modo insuficiente. Portanto, não negaria a esta tese qualquer probabilidade, mas, tendo em consideração os seus problemas, penso que não é pura e simplesmente possível acolhê-la.

Que dizer então? A avaliação mais cuidada de todas as soluções tentadas até agora, encontrei-a no livro sobre Jesus de John P. Meier, que, no final do seu primeiro volume, expôs um amplo estudo sobre a cronologia da vida de Jesus. E chega à conclusão de que é preciso escolher entre a cronologia sinóptica e a joanina, demonstrando, com base no conjunto das fontes, que a decisão deve ser favorável a João.

João tem razão quando afirma que, no momento do processo de Jesus diante de Pilatos, as autoridades judaicas ainda não tinham comido a Páscoa e por isso deviam conservar-se cultualmente puras. Tem razão ao dizer que a crucifixão não teve lugar no dia da festa, mas na sua vigília. Isto significa que Jesus morreu na altura em que se imolavam no templo os cordeiros pascais. Que depois os cristãos tivessem visto nisso mais do que um puro acaso, que tivessem reconhecido Jesus como o autêntico Cordeiro, que precisamente assim tivessem encontrado o rito dos cordeiros elevado ao seu verdadeiro significado – tudo isso é simplesmente normal.

Resta a pergunta: mas, então, porque é que os sinópticos falam de uma ceia pascal? Em que se baseia esta linha da tradição? Uma resposta verdadeiramente convincente a esta pergunta, nem Meier a pôde dar. Todavia, faz a tentativa, como aliás muitos outros exegetas, através da crítica redaccional e literária; procura demonstrar que os textos de Mc 14, 1a e 14, 12-16 – os únicos lugares onde se fala da Páscoa em Marcos – terão sido inseridos posteriormente. Na narrativa verdadeira e própria da Última Ceia, não seria mencionada a Páscoa.

Esta operação, apesar dos numerosos nomes importantes que a sustentam, é artificial. Mas é justa a indicação de Meier segundo a qual, na narrativa da própria Ceia feita pelos sinópticos, o ritual pascal aparece tão pouco como em João. Assim, poder-se-á, embora com alguma reserva, subscrever a afirmação de que «toda a tradição joanina […] concorda plenamente com a tradição original dos sinópticos relativamente ao carácter da Ceia como não pertencente à Páscoa» (A Marginal Jew, I, p. 398). Mas então o que foi, verdadeiramente, a Última Ceia de Jesus? E como se chegou à concepção, seguramente muito antiga, do seu carácter pascal? A resposta de Meier é surpreendentemente simples e, sob muitos aspectos, convincente. Jesus estava consciente da sua morte iminente; sabia que não mais iria poder comer a Páscoa. Nesta clara certeza, convidou os seus para uma Última Ceia de carácter muito particular, uma Ceia que não pertencia a nenhum rito judaico determinado, mas era a sua despedida, na qual Ele deu algo novo, isto é, Se deu a Si mesmo como o verdadeiro Cordeiro, instituindo assim a sua Páscoa.

Em todos os Evangelhos sinópticos fazem parte desta Ceia as profecias de Jesus sobre a sua morte e sobre a sua ressurreição. Em Lucas, elas assumem uma forma particularmente solene e misteriosa: «Tenho ardentemente desejado comer esta Páscoa convosco, antes de padecer, pois digo-vos que já não a voltarei a comer até ela ter pleno cumprimento no Reino de Deus» (22, 15-16). A frase permanece equívoca: pode significar que Jesus come, pela última vez, a Páscoa habitual com os seus; mas pode significar também que já não a come mais, encaminhando-se para a nova Páscoa.

Um dado é evidente em toda a tradição: o essencial desta Ceia de despedida não foi a Páscoa antiga, mas a novidade que Jesus realizou neste contexto. Mesmo se esta refeição de Jesus com os Doze não foi uma ceia pascal segundo as prescrições rituais do judaísmo, num olhar retrospectivo tornou-se evidente, com a morte e a ressurreição de Jesus, o significado intrínseco do todo: era a Páscoa de Jesus. E, neste sentido, Ele celebrou a Páscoa e não a celebrou. Os ritos antigos não podiam ser praticados; quando chegou o momento, Jesus já estava morto. Mas Ele entregara-Se a Si mesmo e assim tinha celebrado com eles verdadeiramente a Páscoa. Desta forma, o antigo não tinha sido negado, mas – e só assim poderia ser – levado ao seu sentido pleno.

O primeiro testemunho desta visão unificadora do novo e do antigo que é operada pela nova interpretação da Ceia de Jesus em relação com a Páscoa no contexto da sua morte e ressurreição encontra-se em Paulo, na Primeira Carta aos Coríntios 5, 7: «Purificai-vos do velho fermento, para serdes uma nova massa, já que sois pães ázimos. Pois Cristo, nossa Páscoa, foi imolado» (cf. Meier, A Marginal Jew, I, p. 429 s.). Como em Marcos 14, 1, também aqui se sucedem o primeiro dia dos Ázimos e a Páscoa, mas o sentido ritual de então é transformado num significado cristológico e existencial. Agora, os «ázimos» devem ser os próprios cristãos, libertados do fermento do pecado. E o Cordeiro imolado é Cristo. Nisto, Paulo concorda perfeitamente com a descrição joanina dos acontecimentos. Assim, para ele, morte e ressurreição de Cristo tornaram-se a Páscoa que permanece.

Com base nisto, pode-se compreender como a Última Ceia de Jesus – que não era só um prenúncio, mas nos dons eucarísticos compreendia também uma antecipação de cruz e ressurreição – bem depressa acabou por ser considerada como Páscoa, como a sua Páscoa. E era-o verdadeiramente.

3. Jesus diante de Pilatos

A conclusão do interrogatório de Jesus no Sinédrio foi a que Caifás esperava: Jesus foi declarado réu de blasfémia, delito para o qual se previa a pena de morte. Mas, dado que o poder de infligir a pena capital estava reservado aos romanos, o processo tinha de ser transferido para Pilatos para que, deste modo, aparecesse em primeiro plano o aspecto político da sentença de culpabilidade. Jesus tinha-Se declarado Messias e, consequentemente, pretendera para Si a dignidade real, embora de um modo completamente particular. A reivindicação da realeza messiânica era um delito político que devia ser punido pela justiça romana. Com o canto do galo, surgira o dia. Era costume do governador romano sentar-se no tribunal às primeiras horas da manhã.

E assim Jesus foi levado pelos seus acusadores ao pretório e apresentado a Pilatos como malfeitor que merecia a morte. É o dia da parasceve («preparação») para a festa da Páscoa; de tarde seriam degolados os cordeiros para o banquete da noite. Para tomar parte nesse banquete, requer-se a pureza ritual; por isso, os sacerdotes acusadores não podiam entrar no pretório pagão, e trataram com o governador romano diante do edifício. Assim João, que nos transmite esta notícia (cf. 18, 28-29), deixa transparecer a contradição entre a correcta observância das prescrições cultuais de pureza e a questão da verdadeira pureza interior do homem: aos acusadores não lhes passa pela cabeça que aquilo que inquina não é entrar na casa pagã, mas o sentimento íntimo do coração. Ao dizê-lo, o evangelista sublinha ao mesmo tempo que a ceia pascal ainda não tivera lugar e que devia ainda verificar-se a matança dos cordeiros.

Na descrição do andamento do processo, os quatro Evangelhos estão de acordo em todos os pontos essenciais. João é o único que refere o diálogo entre Jesus e Pilatos, no qual é esquadrinhada em toda a sua profundidade a questão da realeza de Jesus, do motivo da sua morte (cf. 18, 33-38). Obviamente, o problema do valor histórico desta tradição é objecto de discussão entre os exegetas. Enquanto Charles H. Dodd e também Raymond E. Brown a avaliam em sentido positivo, Charles K. Barrett exprime-se em sentido extremamente crítico: «Os acrescentos e as modificações que João faz não abonam em favor da sua credibilidade histórica» (op. cit., p. 511). Seguramente ninguém está à espera de que João nos tenha querido dar algo parecido com uma acta do processo.

Mas certamente que se pode supor que ele tenha sabido interpretar, com grande exactidão, a questão central de que se tratava e, por conseguinte, nos coloque diante da verdade essencial de tal processo. Deste modo, o próprio Barret afirma que «João identificou, com máxima clarividência, a chave interpretativa para a história da Paixão na realeza de Jesus e pôs em relevo o seu significado talvez mais claramente do que qualquer outro autor neotestamentário» (p. 512). Antes de mais, perguntemo-nos: quem eram precisamente os acusadores? Quem insistiu para que Jesus fosse condenado à morte? Nas respostas dos Evangelhos, há diferenças sobre as quais devemos reflectir. Segundo João, eles são simplesmente «os judeus». Mas este termo, em João, não indica de modo algum – ao contrário do que o leitor moderno talvez se sinta inclinado a interpretar – o povo de Israel enquanto tal, e menos ainda reveste um carácter «racista». Em última análise, o próprio João, quanto à nacionalidade, era israelita, tal como Jesus e todos os seus. A comunidade primitiva era inteiramente formada por israelitas. Em João, o referido termo tem um significado específico e rigorosamente limitado: designa a aristocracia do templo. Portanto, no quarto Evangelho, o círculo dos acusadores que pretendem a morte de Jesus é descrito com precisão e claramente limitado: trata-se precisamente da aristocracia do templo, com alguma excepção, como deixa entender a alusão a Nicodemos (cf. 7, 50-52).

Em Marcos, no contexto da amnistia pascal (Barrabás ou Jesus), o círculo dos acusadores apresenta-se alargado: aparece o ochlos, que opta pela libertação de Barrabás. Ochlos significa primária e simplesmente uma quantidade de gente, «a massa». A palavra possui, não raro, uma tonalidade negativa, com o sentido de «gentalha». De qualquer modo, com este termo não se indica «o povo» dos judeus como tal. Na amnistia pascal – que, na realidade, não conhecemos a partir de outras fontes, embora não haja razões para duvidar dela –, o povo, como é habitual em semelhantes amnistias, tem o direito de fazer uma proposta expressa por «aclamação»; neste caso, a aclamação do povo tem um carácter jurídico (cf. Pesch, Markusevangelium, II, p. 466). Quanto à «massa», neste caso, trata-se de facto dos apoiantes de Barrabás, mobilizados para a amnistia; enquanto sedicioso contra o poder romano, podia naturalmente contar com um certo número de simpatizantes. Por conseguinte, estavam presentes os sequazes de Barrabás, a «massa», enquanto os adeptos de Jesus permaneciam escondidos por medo; e deste modo a voz do povo, com a qual contava o direito romano, estava unilateralmente representada. Assim, em Marcos, ao lado dos «judeus», isto é, do círculo das autoridades sacerdotais, aparece – é verdade – o ochlos, o grupo dos apoiantes de Barrabás, mas não o povo judeu enquanto tal.

Uma amplificação do ochlos de Marcos, fatal nas suas consequências, encontra-se em Mateus (27, 25), que diversamente fala de «todo o povo», atribuindo-lhe o pedido da crucifixão de Jesus. Com isto, Mateus não exprime seguramente um facto histórico: como teria podido todo o povo estar presente naquele momento e pedir a morte de Jesus? A realidade histórica aparece de maneira seguramente correcta em João e em Marcos. O verdadeiro grupo dos acusadores é o dos círculos contemporâneos do templo, tendo-se-lhes associado, no contexto da amnistia pascal, a «massa» dos apoiantes de Barrabás.

Nisto talvez se possa dar razão a Joachim Gnilka, segundo o qual Mateus, ao transpor os factos históricos, quis formular uma etiologia teológica, procurando explicar o terrível destino de Israel na guerra judaico-romana, na qual foram tirados ao povo o país, a cidade e o templo (cf. Matthäusevangelium, II, p. 459). Neste contexto, Mateus pensa talvez nas palavras de Jesus ao predizer o fim do templo: «Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te são enviados! Quantas vezes quis reunir os teus filhos como a galinha reúne os seus pintainhos sob as asas, e tu não quiseste! Pois bem, a vossa casa ficará deserta» (Mt 23, 37-38; cf. em Gnilka todo o subtema «Gerichtsworte», pp. 295-308).

A propósito destas palavras, é preciso – como foi indicado na reflexão sobre o discurso escatológico de Jesus – recordar a íntima analogia entre a mensagem do profeta Jeremias e a de Jesus. Contra a cegueira dos círculos dominantes de então, Jeremias anuncia a destruição do templo e o exílio de Israel. Mas fala também de uma «Nova Aliança»: o castigo não é a última palavra; está ao serviço da cura. De forma análoga, Jesus anuncia a «casa deserta» e desde logo dá a Nova Aliança «no seu sangue» – trata-se, em última análise, de cura, e não de destruição nem de repúdio.

Mesmo que «todo o povo», segundo Mateus, tivesse dito «que o seu sangue caia sobre nós e sobre os nossos filhos» (27, 25), o cristão há-de recordar que o sangue de Jesus fala uma linguagem diferente da do sangue de Abel (cf. Hb 12, 24): não pede vingança nem punição, mas é reconciliação. Não foi derramado contra ninguém, mas é sangue derramado por muitos, por todos. «Todos pecaram e estão privados da glória de Deus. […] Cristo Jesus [é] que Deus apresentou como vítima de propiciação […] pelo seu sangue», diz São Paulo (Rm 3, 23.25).

Tal como, a partir da fé, é preciso ler de modo totalmente novo a afirmação de Caifás acerca da necessidade da morte de Jesus, assim também se deve fazer com a palavra de Mateus sobre o sangue: lida na perspectiva da fé, ela significa que todos nós precisamos da força purificadora do amor, e tal força é o seu sangue. Não é maldição, mas redenção, salvação. Só com base na teologia da Última Ceia e da Cruz, presente na totalidade do Novo Testamento, é que a palavra de Mateus sobre o sangue adquire o seu sentido correcto.

Passemos dos acusadores ao juiz: o governador romano Pôncio Pilatos. Enquanto Flávio Josefo e, de modo particular, Filão de Alexandria traçam uma imagem dele totalmente negativa, temos outros testemunhos em que ele aparece decidido, pragmático e realista. Diz-se frequentemente que os Evangelhos, com base numa tendência filoromana motivada politicamente, tê-lo-ão apresentado de modo cada vez mais positivo, carregando progressivamente os judeus com a responsabilidade da morte de Jesus. Mas em abono de tal tendência não havia nenhuma razão na situação histórica dos evangelistas: quando foram redigidos os Evangelhos, a perseguição de Nero tinha já mostrado o lado cruel do Estado romano e toda a arbitrariedade do poder imperial.

Se pudermos datar o Apocalipse mais ou menos do período em que foi redigido o Evangelho de João, torna-se evidente que o quarto Evangelho não se formou num contexto que tenha dado motivo para uma orientação filoromana.

Nos Evangelhos, a imagem de Pilatos mostra-nos, muito realisticamente, o prefeito romano como um homem que sabia intervir de forma brutal, se isso lhe parecesse oportuno para a ordem pública; mas sabia também que Roma devia o seu domínio sobre o mundo – e não em último lugar – à tolerância perante as divindades estrangeiras e à força pacificadora do direito romano. Assim nos aparece Pilatos no processo de Jesus.

A acusação de que Jesus Se tinha declarado rei dos judeus era grave. É verdade que Roma podia, efectivamente, reconhecer reis regionais – como Herodes –, mas estes deviam ser legitimados por Roma e obter de Roma a descrição e a delimitação dos seus direitos de soberania.

Um rei sem tal legitimação era um rebelde que ameaçava a pax romana e, consequentemente, tornava-se réu de morte. Mas Pilatos sabia que não surgira de Jesus um movimento revolucionário. Depois de tudo o que ouvira, Jesus deve ter-lhe parecido um exaltado religioso, que violava talvez ordenamentos judaicos relativos ao direito e à fé, mas isso não lhe interessava. Sobre isso deviam julgar os próprios judeus. Sob o aspecto dos ordenamentos romanos referentes à jurisdição e ao poder, que entravam na esfera da sua competência, não havia nada de sério contra Jesus.

Considerada a pessoa de Pilatos, temos agora de nos debruçar sobre o próprio processo. Em João 18, 34-35, diz-se claramente que no foro de Pilatos, com base nas informações que ele possuía, não havia nada contra Jesus. À autoridade romana não chegara nenhuma notícia sobre qualquer coisa que, de algum modo, pudesse ameaçar a paz legal.

A acusação provinha dos próprios concidadãos de Jesus, das autoridades do templo. Pilatos deve ter ficado maravilhado quando viu os concidadãos de Jesus apresentarem-se diante dele como defensores de Roma, num caso em que os seus conhecimentos pessoais não lhe pareciam exigir qualquer intervenção.

Mas, no interrogatório, inesperadamente, surge um ponto de efervescência: a declaração de Jesus. À afirmação de Pilatos «logo, Tu és Rei!», Ele respondeu: «É como dizes: Eu sou rei. Para isto nasci, para isto vim ao mundo: para dar testemunho da Verdade. Todo aquele que vive da Verdade escuta a minha voz» (Jo 18, 37). Antes, Jesus tinha dito: «A minha realeza não é deste mundo. Se a minha realeza fosse deste mundo, os meus guardas teriam lutado para que Eu não fosse entregue às autoridades judaicas; portanto, o meu reino não é de cá» (18, 36).

Esta «confissão» de Jesus coloca Pilatos numa situação estranha: o acusado reivindica realeza e reino (basileía). Mas sublinha a total diversidade dessa realeza, e fá-lo com uma anotação concreta que deveria ser decisiva para o juiz romano: ninguém combate por essa realeza.

Se o poder – e, concretamente, o poder militar – é característico da realeza e do reino, nada disso se encontra em Jesus. Por isso, não há sequer uma ameaça para os ordenamentos romanos. Esse reino não é violento. Não dispõe de nenhuma legião.

Com estas palavras, Jesus criou um conceito absolutamente novo de realeza e de reino, face ao qual colocou Pilatos, o representante do poder terreno clássico. Que devia pensar Pilatos, que devemos pensar nós de tal conceito de reino e de realeza? Trata-se de uma coisa irreal, uma quimera que não merece o nosso interesse? Ou porventura terá algo a ver connosco?

A par da delimitação clara do conceito de reino (nenhum combate, impotência terrena), Jesus introduziu um conceito positivo, para tornar acessíveis a essência e o carácter particular do poder desta realeza: a Verdade. Sucessivamente, no desenrolar do interrogatório, Pilatos pôs em jogo outro termo que provém do seu mundo e, normalmente, aparece associado ao termo «reino»: o poder, a autoridade (exousía). O domínio requer um poder; melhor, define-o. Jesus, pelo contrário, qualifica como essência da sua realeza o testemunho da verdade. Será porventura a verdade uma categoria política? Ou será que o «reino» de Jesus nada tem a ver com a política? Mas a que ordem pertence ele então? Dado que Jesus assenta o seu conceito de realeza e de reino na verdade como categoria fundamental, Pilatos – pragmático como era – muito compreensivelmente pergunta: «Que é a verdade?» (18, 38).

A mesma pergunta é colocada também pela moderna doutrina do Estado: pode a política assumir a verdade como categoria para a sua estrutura? Ou deve deixar a verdade, enquanto dimensão inacessível, à subjectividade e, pelo contrário, esforçar-se por conseguir estabelecer a paz e a justiça com os instrumentos disponíveis no âmbito do poder? Dado ser impossível um consenso sobre a verdade, a política, apostando nela, não se tornará porventura instrumento de certas tradições que, na realidade, não passam de formas de conservação do poder? Mas, por outro lado, se a verdade nada conta, que sucede? Então, que justiça será possível? Não deve porventura haver critérios comuns que garantam verdadeiramente a justiça para todos, critérios esses subtraídos à arbitrariedade das opiniões mutáveis e à concentração do poder? Não é verdade que as grandes ditaduras existiram em virtude da mentira ideológica e que só a verdade pôde trazer a libertação? Que é a verdade? Esta pergunta do pragmático, colocada superficialmente e com um certo cepticismo, é uma pergunta muito séria, na qual está efectivamente em jogo o destino da humanidade. Então, que é a verdade? Podemos reconhecê-la? Pode ela entrar, como critério, no nosso pensar e no nosso querer, na vida tanto do indivíduo como da comunidade?

A definição clássica formulada pela filosofia escolástica apresenta a verdade como «adaequatio intellectus et rei» («a correspondência entre intelecto e realidade») (Tomás de Aquino, Summa Theol., I, q. 21, a. 2c). Se a razão de uma pessoa reflecte uma coisa tal como ela é em si mesma, então essa pessoa encontrou a verdade; mas só um pequeno sector daquilo que realmente existe, e não a verdade na sua grandeza e integralidade. Com outra afirmação de São Tomás, já nos aproximamos mais das intenções de Jesus: «A verdade está no intelecto de Deus em sentido próprio e em primeiro lugar (proprie et primo); enquanto no intelecto humano está em sentido próprio e derivado (proprie quidem et secundario) » (De Verit., q. 1, a. 4c). E deste modo se chega, finalmente, à fórmula lapidar: Deus é «ipsa summa et prima veritas» («a verdade suma e primeira») (Summa Theol., I, q. 16, a. 5c).

Com esta fórmula, estamos perto daquilo que Jesus pretende dizer quando fala da verdade e de que veio ao mundo para dar testemunho dela. No mundo, verdade e opinião errada, verdade e mentira estão continuamente misturadas e são quase indissociáveis. A Verdade, em toda a sua grandeza e pureza, não aparece. O mundo é «verdadeiro» na medida em que reflecte Deus, o sentido da criação, a Razão eterna donde brotou. E torna-se tanto mais verdadeiro quanto mais se aproximar de Deus. O homem torna-se verdadeiro, torna-se ele mesmo quando se conforma com Deus. Então alcança a sua verdadeira natureza.

Deus é a realidade que dá o ser e o sentido. «Dar testemunho da verdade» significa pôr em realce Deus e a sua vontade face aos interesses do mundo e às suas potências. Deus é a medida do ser. Neste sentido, a verdade é o verdadeiro «Rei» que dá a todas as coisas a sua luz e a sua grandeza. Podemos também dizer que dar testemunho da verdade significa, partindo de Deus, da Razão criativa, tornar a criação decifrável e a sua verdade tão acessível que possa constituir a medida e o critério orientador no mundo do homem, que venham ao encontro dos grandes e poderosos o poder da verdade, o direito comum, o direito da verdade.

Poderíamos mesmo dizer que a não-redenção do mundo consiste, precisamente, na não-decifração da criação, no não-reconhecimento da verdade, uma situação que depois conduz, inevitavelmente, ao domínio do pragmatismo, e deste modo faz com que o poder dos fortes se torne o deus deste mundo. À luz disto poderíamos nós, pessoas modernas, ser tentados a dizer: «Para nós, graças às ciências, a criação tornou-se decifrável». De facto, por exemplo Francis S. Collins, que dirigiu o Projecto Genoma Humano, afirma com feliz assombro: «A linguagem de Deus foi decifrada» (The Language of God, p. 99). Sim, na grandiosa matemática da criação, que hoje podemos ler no código genético do homem, percebemos verdadeiramente a linguagem de Deus; mas não a linguagem inteira, infelizmente. A verdade funcional acerca do homem tornou-se visível; mas a verdade sobre ele mesmo – o que é, donde vem, para que existe, que é o bem ou o mal – esta verdade, infelizmente, não pode ser lida do mesmo modo. Antes com o crescente conhecimento da verdade funcional parece caminhar a par e passo uma cegueira crescente quanto à «própria verdade», ou seja, quanto à questão de saber qual é a nossa verdadeira realidade e qual é o nosso verdadeiro fim.

Que é a verdade? Não foi apenas Pilatos quem pôs de parte esta questão como insolúvel e, para a sua função, impraticável. Ainda hoje, tanto na ágora política como na discussão acerca da formação do direito, a maioria sente aversão por ela. Mas, sem a verdade, o homem não se encontra a si mesmo; no fim de contas, abandona o campo aos mais fortes. A «Redenção», no sentido pleno da palavra, só pode consistir no facto de a verdade se tornar reconhecível. E ela torna-se reconhecível se Deus Se tornar reconhecível. Ele torna-Se reconhecível em Jesus Cristo. N’Ele, Deus entrou no mundo, e assim plantou a medida da verdade no meio da história. Externamente, a verdade é impotente no mundo; tal como Cristo, que, segundo os critérios do mundo, não tem poder: Ele não possui nenhuma legião; acaba crucificado. Mas é precisamente assim, na carência total de poder, que Ele é poderoso, e só assim a verdade se torna incessantemente força.

No diálogo entre Jesus e Pilatos, trata-se da realeza de Jesus e, consequentemente, da realeza e do «Reino» de Deus. Precisamente no diálogo de Jesus com Pilatos, torna-se evidente que não existe nenhuma ruptura entre o anúncio de Jesus na Galileia – o Reino de Deus – e os seus discursos em Jerusalém. O centro da mensagem até à cruz – até à inscrição na cruz – é o Reino de Deus, a nova realeza que Jesus representa.

Mas o centro dessa realeza é a Verdade. A realeza anunciada por Jesus nas parábolas e, por fim, de modo totalmente aberto diante do juiz terreno é, precisamente, a realeza da Verdade. A instauração desta realeza como verdadeira libertação do homem é o que interessa.

Ao mesmo tempo, torna-se evidente que não há nenhuma contradição entre a focalização pré-pascal no Reino de Deus e a focalização pós-pascal na fé em Jesus Cristo como Filho de Deus. Em Cristo, entrou no mundo Deus, a Verdade. A cristologia é o anúncio concretizado do Reino de Deus.

Depois do interrogatório, ficou claro para Pilatos aquilo que, em princípio, ele já sabia antes. Aquele Jesus não era um revolucionário político, a sua mensagem e o seu comportamento não constituíam um perigo para a dominação romana. Se transgrediu a Tora, a ele, que era romano, isso não interessava. No entanto, parece que Pilatos sentiu também um certo temor supersticioso diante daquela figura estranha. Pilatos era certamente um céptico; mas, enquanto homem da Antiguidade, não excluía que deuses ou, em todo o caso, seres semelhantes aos deuses pudessem aparecer sob o aspecto de seres humanos. João diz que os «judeus» acusavam Jesus de Se proclamar Filho de Deus, e acrescenta: «Quando Pilatos ouviu estas palavras, mais assustado ficou» (19, 8).

Penso que se deve ter em conta este temor em Pilatos: haveria verdadeiramente algo de divino naquele homem? Condenando-O, colocar-se-ia porventura contra uma potestade divina? Deveria por acaso recear a ira de tais potestades? Penso que a sua conduta neste processo não se explica apenas por um certo empenho na justiça, mas também precisamente com base nestas ideias. Obviamente que os acusadores se dão conta disso e contrapõem um medo a outro medo. Ao temor supersticioso de uma possível presença divina, contrapõem o medo muito concreto de ficar privado do favor do imperador, de perder a posição e se precipitar num abismo sem fundo. A afirmação «se libertas este homem, não és amigo de César! » (Jo 19, 12) é uma ameaça. No fim, a preocupação com a carreira é mais forte do que o medo diante das potestades divinas. Mas, antes da decisão final, há ainda um interlúdio dramático e doloroso em três actos, que devemos pelo menos brevemente considerar. O primeiro acto consiste na apresentação que Pilatos faz de Jesus como candidato para a amnistia pascal, procurando assim obter a sua libertação. Mas, deste modo, expõe-se a uma situação fatal. Quem é proposto como candidato para a amnistia de per si já está condenado; só assim tem sentido a amnistia. Se pertence à multidão o direito de aclamação, então, após o seu pronunciamento, há que considerar condenada a pessoa que a multidão não escolheu. Neste sentido, na proposta de libertação através da amnistia já está tacitamente incluída uma condenação.

Sobre a confrontação entre Jesus e Barrabás e também o significado teológico de tal alternativa, já escrevi detalhadamente na Parte I desta obra (cf. pp. 72-73). Por isso, bastará recordar aqui brevemente o essencial. João qualifica Barrabás, segundo as nossas traduções, simplesmente como um «salteador» (18, 40). Mas, no contexto político de então, o termo grego por ele usado tinha assumido também o significado de «terrorista», ou «combatente da resistência». Que fosse este o significado subentendido torna-se evidente na narrativa de Marcos: «Havia um, chamado Barrabás, preso com os insurrectos que tinham cometido um assassínio durante a revolta» (15, 7). Barrabás (no original, Barabba, «filho do pai») é uma espécie de figura messiânica; na proposta da amnistia pascal, duas interpretações da esperança messiânica aparecem frente a frente. Segundo a lei romana, trata-se de dois criminosos acusados do mesmo delito: eram sediciosos contra a pax romana. É claro que Pilatos prefere o «exaltado» não violento, que é como aparece Jesus aos seus olhos. Mas as categorias da multidão e também das autoridades do templo são diferentes. Se a aristocracia do templo chega a dizer «não temos outro rei, senão César!» (Jo 19, 15), isso só aparentemente constitui uma renúncia à esperança messiânica de Israel: este rei, não o queremos. Eles desejam outro género de solução para o problema. A humanidade encontrar-se-á sempre de novo perante a mesma alternativa: dizer «sim» àquele Deus que age apenas com o poder da verdade e do amor ou apoiar-se no concreto, naquilo que está ao alcance da mão, na violência.

Os seguidores de Jesus não estão presentes no lugar do julgamento, estão ausentes por medo. Mas faltam também porque não se apresentam como massa. A sua voz far-se-á ouvir no Pentecostes com a pregação de Pedro, que então fará «sentir o coração trespassado» àqueles homens que antes se tinham decidido a favor de Barrabás. Perante a pergunta «que havemos de fazer, irmãos?», recebem a resposta «convertei-vos», renovai e transformai o vosso modo de pensar, o vosso ser (cf. Act 2, 37-38). É este o grito que, diante da cena de Barrabás e de todas as suas reedições, nos deve rasgar o coração e levar a uma transformação de vida. O segundo acto está sintetizado, laconicamente, por João nesta frase: «Então, Pilatos mandou levar Jesus e flagelá-l’O» (19, 1). A flagelação era a punição que, no direito penal romano, era infligida como castigo concomitante da condenação à morte (Hengel/Schwemer, p. 609). Em João, diversamente, a flagelação aparece como um acto colocado durante o interrogatório; uma disposição que o prefeito, em virtude do seu poder, estava autorizado a tomar. Era uma punição extremamente bárbara; o condenado «era açoitado por vários algozes até estes se cansarem e a carne do criminoso se despegar e pender em pedaços ensanguentados» (Blinzler, p. 321). Rudolf Pesch comenta: «O facto de Simão de Cirene ter de carregar, em vez de Jesus, a travessa da cruz e de Jesus morrer tão depressa está provavelmente ligado à tortura da flagelação, durante a qual outros criminosos já morriam» (Markusevangelium, II, p. 467).

O terceiro acto é a coroação de espinhos. Os soldados troçam cruelmente de Jesus. Sabem que Ele tem a pretensão de ser rei. Mas agora encontra-Se nas mãos deles, que se comprazem em humilhá-l’O, em demonstrar-Lhe a sua força, e talvez descarregar sobre Ele, de modo substitutivo, a sua raiva contra os grandes. Revestem-n’O a Ele, homem ferido e chagado em todo o corpo, de símbolos caricaturais da majestade imperial: o manto escarlate, a coroa de espinhos entrançados e o ceptro de cana. Prestam-Lhe homenagem: «Salve, ó rei dos judeus!»; a sua homenagem consiste em bofetadas, com que manifestam uma vez mais todo o seu desprezo por Ele (cf. Mt 27, 28-30; Mc 15, 17-19; Jo 19, 2-3).

A história das religiões conhece a figura do rei de escárnio, análoga ao fenómeno do «bode expiatório». Sobre ele, descarrega-se tudo o que angustia os homens; pretende-se assim afastar tudo isso do mundo. Sem o saberem, os soldados realizam o que, naqueles ritos e costumes, não se podia cumprir: «O castigo que nos salva caiu sobre Ele, fomos curados pelas suas chagas» (Is 53, 5). Nesta apresentação caricatural, Jesus é levado a Pilatos, e este apresenta-O à multidão, à humanidade: «Ecce homo!» («Eis o Homem!») (Jo 19, 5). Provavelmente, o juiz romano comove-se com a figura daquele misterioso acusado flagelado e escarnecido. Ele conta com a compaixão daqueles que O vêem. «Ecce homo»: espontaneamente, esta expressão adquire uma profundidade que ultrapassa aquele momento. Em Jesus aparece o ser humano como tal. N’Ele se manifesta a miséria de todos os prejudicados e arruinados. Na sua miséria, reflecte-se a desumanidade do poder humano, que assim esmaga o impotente. N’Ele se reflecte aquilo a que chamamos «pecado»: aquilo em que se torna o homem quando vira as costas a Deus e, autonomamente, toma nas suas mãos o governo do mundo.

Mas é verdade também um outro aspecto: não se pode tirar a Jesus a sua dignidade íntima. N’Ele continua presente o Deus escondido. Também o homem açoitado e humilhado permanece imagem de Deus. Desde que Jesus Se deixou açoitar, são precisamente os feridos e os açoitados a imagem do Deus, que quis sofrer por nós. Assim, Jesus, no meio da sua Paixão, é imagem de esperança: Deus está do lado dos que sofrem.

Por fim, Pilatos senta-se na cadeira do juiz. Diz uma vez mais: «Aqui está o vosso Rei!» (Jo 19, 14). Depois, pronuncia a sentença de morte. Sem dúvida, a grande Verdade de que falara Jesus continuou a ser-lhe inacessível; mas a verdade concreta daquele caso, Pilatos conhecia-a bem. Sabia que aquele Jesus não era um criminoso político e que a realeza por Ele reivindicada não constituía nenhum perigo político. Sabia, pois, que devia libertá-l’O. Como prefeito, representava o direito romano, no qual se baseava a pax romana, a paz do império que abraçava o mundo. Por um lado, esta paz era assegurada por meio da força militar de Roma; mas, por outro, só com a força militar não se pode estabelecer nenhuma paz. A paz funda-se na justiça. A força de Roma era o seu sistema jurídico, a ordem jurídica com que os homens podiam contar: Pilatos – repetimo-lo – conhecia a verdade de que se tratava neste caso e sabia, portanto, que ela exigia dele a justiça. Mas, no fim, venceu nele a interpretação pragmática do direito: mais importante do que a verdade do caso era a força pacificadora do direito; talvez tenha sido este o seu pensamento e assim se justificou a si mesmo. Uma absolvição do inocente não só podia prejudicá-lo a ele pessoalmente (este medo foi certamente um motivo determinante para o seu agir), mas podia também provocar novos dissabores e desordens que, precisamente nos dias da Páscoa, havia que evitar.

Para ele, neste caso, a paz foi mais importante do que a justiça. Deviam passar para segundo plano não só a Verdade grande e inacessível, mas também a verdade concreta do caso. Deste modo pensou cumprir o verdadeiro sentido do direito, a sua função pacificadora. E assim talvez tenha apaziguado a sua consciência. De momento, tudo pareceu correr bem. Jerusalém ficou tranquila. Contudo, o facto de, em última análise, a paz não poder ser estabelecida contra a verdade haveria de manifestar-se mais tarde.

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