"O Carlos vivia o amor como um fantasista"

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Os dois amigos em Outubro de 2010, na festa dos 65 anos de Carlos Castro Foto: Carlos Soares/Flash

Amigo de Carlos Castro durante 40 anos, o jornalista Guilherme de Melo conta sem rodeios a forma como o cronista social se tornou uma figura pública e criou para si um mito romântico.

Como é que eu conheci o Carlos? Há os irmãos que o sangue nos dá e há os irmãos que a vida nos dá. O Carlos foi o irmão mais novo que a vida me deu. Eu tinha 43 anos, estava a meio da minha carreira de jornalista, o Carlos era um rapaz de vinte e poucos anos. Ele sempre esteve ligado ao mundo do espectáculo.

Em Angola, tinha colaborado numa revista, tinha ganho um prémio de poesia, mas não era jornalista. Quando chegou a Lisboa, em 1975, conheceu a Ruth Bryden, um travesti muito famoso, e foi ela que lhe deu a mão. Foi assim que ele começou a ganhar dinheiro e foi quando o conheci, numa noite de espectáculo no cabaré Scarlatti.

Foi lá que o Carlos reencontrou a Maria Alzira Bento, que tinha sido jornalista em Angola e era chefe de redacção da Nova Gente. Sabia que o Carlos gostava de escrever e, como estava ligado ao mundo do espectáculo, dos artistas, ela teve a ideia de criar uma página de fofocas - assim nasceu a Daniela. Depois, começou a escrever croniquetas e quando o Correio da Manhã foi fundado convidaram-no a ter uma página sobre o mundo do espectáculo.

Como ele não tinha experiência de escrita, pedia muito a minha opinião e do Fernando Dacosta. A carteira profissional ele conseguiu-a com o Cáceres Monteiro. Daí para diante, voou por ali fora, especializou-se naquele tipo de crónica social. Tinha uma forma muito peculiar de escrever. Muita gente nem se apercebeu, mas ele tinha uma sensibilidade requintada, era um apaixonado por pintura.

Um sonhador

Depois dos conselhos profissionais, passei a dar-lhe conselhos mais pessoais. A nível sentimental, éramos totalmente opostos. Eu sempre tive os pés bem assentes no chão. O Carlos era um fantasista, um sonhador. As coisas eram como ele queria, não como na realidade eram. Sempre foi um naïf, uma pessoa de uma grande ingenuidade, uma criança grande. E nos amores... Quando amava, entregava-se completamente. Estava desfasado do seu tempo, vivia fora do tempo.

Na cabeça dele, existia o amor romântico, às vezes sem essa necessidade sexual. Ele só tinha um grande defeito: quando amava, era extremamente absorvente, possessivo e obsessivo. Eu às vezes dizia-lhe: deixa-os respirar.

O Carlos só teve uma grande ligação em toda a vida - estava agora a tentar ter outra... [Essa grande ligação] foi o grande amor da vida dele. Era uma pessoa ligada ao meio artístico e conheceram-se quando o rapaz saiu da tropa. Tornou-se fotógrafo e procurou o Carlos, que estava no Correio da Manhã, para ver se ele lhe dava uma oportunidade.

Nunca se conseguiu ligar sentimentalmente a um homossexual, tinha que haver sempre uma componente de masculinidade. Essa ligação de 15 anos acabou porque o rapaz gostava de mulheres e o Carlos não aceitava isso. Quando uma pessoa entrava na sua vida, era só dele. Ele exigia o que dava. Acredito sinceramente - porque ele me disse - que nunca o traiu. O rapaz casou-se e houve um corte radical. O Carlos não queria aceitar e teve uma depressão terrível. Andou meses deprimidíssimo.

O amor mais maduro não resultava para ele. Porquê rapazes tão novos? Porque era ávido por beleza e só se é belo quando se tem 20 ou 30 anos. Eu também fui assim. Vivi 28 anos com o meu companheiro, que morreu em 2004, mas que era um rapaz de 25 quando o conheci. Mas ele foi amadurecendo ao meu lado, foi envelhecendo ao meu lado. Viver um amor com tanta diferença de idade é mais difícil nas relações homossexuais. Os mais novos vivem nesse jogo de entrega e rejeição, entrega e rejeição, e o homossexual mais velho não aceita isso.

Porque quando o Carlos tinha as suas paixões e acabavam, ele caía no imobilismo, na depressão. Era um exaltado em termos sentimentais. Um crédulo, e toda a vida, famoso como era, serviu de trampolim para muita gente. Teve muitas desilusões. Entregava-se totalmente e não queria ver que muitas vezes esses rapazes jogavam com o que tinham, a sua beleza, o seu corpo.

"A minha alma gémea"

Este Natal, disse-lhe: "Carlos, tem cuidado." Estava a referir-me à decepção, porque ele [Renato Seabra, o suspeito do homicídio] é um rapazote de 21 anos e tu és um homem de 65 - claro que não me passava pela cabeça uma tragédia destas.

Eu não conheci o Renato, mas conheço toda a história, contada pelo Carlos, que começou há três meses. Na noite de Natal, o rapaz tinha ido para Coimbra estar com a família e, inevitavelmente, nós falámos nele. "Guilherme, desta vez encontrei o meu companheiro, a metade que me faltava. É a minha alma gémea", disse o Carlos. Eu respondi: "Conheço-te muito bem. Tem cuidado. Ele é uma pessoa ávida de fama e pode estar a fazer um aproveitamento." E ele: "Não, está apaixonadíssimo por mim." E eu a continuar: "Mais tarde ou mais cedo, ele vai seguir a sua vida, é inevitável, e tu sais muito mal disto." E ele respondia: "O Renato ama-me."

Ele precisava de acreditar que o amavam realmente, talvez porque teve muitos traumas na infância. O pai e um dos irmãos eram muito maus para ele, cruéis ao ponto de o torturarem. Ele ficou muito marcado e, por isso, tinha uma fome de amor, uma ânsia de ser amado.

O Renato, estou convencido, era heterossexual. Acredito que o rapaz nunca tivesse tido experiências homossexuais antes, mas esta era uma relação sexualmente consumada. Ele era ambicioso, mandava mensagens ao Carlos, eu vi algumas...

O que me chocou foi a violência deste crime. Se houve violência noutras relações? Que eu saiba, não. Eu tive suspeitas, mas ele nunca admitiu.

Durante a sua vida, o Carlos teve ameaças. Ele tanto despertava simpatias como ódios e não sabia dar a volta às situações, punha-se um pouco à espera que as pessoas fossem ao seu encontro.

Sei que esta viagem a Nova Iorque foi desastrosa, nos últimos dias as coisas não estavam bem entre eles. Havia discussões. O Renato terá confessado que matou para libertar os demónios, os vírus. Para libertar o pecado. Ele foi acólito durante uma série de anos em Cantanhede. Deveria ter a cabeça cheia de ideias sobre o pecado. E entra em extrema violência.

Quem o conheceu, entre os amigos do Carlos, diz que era uma pessoa fechada e com o olhar parado. Ele deve ter uma esquizofrenia qualquer, porque eu admito uma discussão, um encontrão, mas uma hora de brutal violência?

Alguma vez viram o Crepúsculo dos Deuses, quando Gloria Swanson desce a escadaria e diz "Estou pronta para o meu close-up"? Era a imagem que o Carlos tinha do fim da sua vida. Que ironia, não é? Ele sofreu o que sofreu, mas esta tragédia superou qualquer final trágico que ele pudesse imaginar.

A partir de uma entrevista com o jornalista e escritor, reformado do Diário de Notícias
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