No "bunker" de Samuel Beckett

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Ao primeiro embate, Krystian Lupa descobre um autor que revela o mal que existe em cada um de nós: José Luiz Gómez, protagonista deste "Fim de Partida" que veremos este fim-de-semana no Teatro Municipal de Almada, diz que Lupa foi quem melhor percebeu Samuel Beckett

Esta pode ser a primeira encenação que Krystian Lupa faz de Samuel Beckett mas é o próprio que diz que o autor irlandês foi uma figura presente no seu teatro. "Fiz muito teatro beckettiano nas minhas encenações de Thomas Bernhard". Lupa refere-se ao modo como enfrentou estruturas abstractas. E à gestão de personagens que parecem irreais, sem território, e que, na verdade, são explorações profundas dos vícios humanos.

Quando chegou a vez de "um Beckett a sério", esperava-se que se interessasse por um outro texto, que acentuasse linhas determinantes do seu trabalho: a presença do actor num espaço ficcionado, a reverberação da palavra, o tempo como factor oxidante das relações. "Fim de Partida" surgiu através de um convite de José Luiz Gómez, actor e director do Teatro de La Abadía, em Madrid, e Lupa aceitou-a mesmo sabendo que não era uma escolha evidente. "Eu também achava que seria 'À espera de Godot', mas o que me incomoda nessa peça é que a ideia de espera já está inscrita no título. E isso determina, e limita, todo o nosso olhar. Beckett precisa ser lido em Braille para ser entendido. São textos que precisam de ser tocados para serem percebidos. É como se debaixo do texto houvesse outro texto. E esse texto precisasse ser sentido". Krystian Lupa, que nunca tinha encenado uma peça de Samuel Beckett, descobriu "um génio". A estreia aconteceu a 10 de Abril de 2010 e depois "Fim de Partida" percorreu várias cidades espanholas, até terminar a sua digressão em Barcelona. Almada é o primeiro lugar onde se apresenta desde então.

José Luis Gómez, que é o protagonista de "Fim de Partida" (e que vimos em 2005, no Porto, a levantar do chão Manuel Azaña, o último Presidente da República espanhol), diz que  Lupa "propõe algo de muito raro no teatro contemporâneo": "Durante muito tempo, Beckett foi feito seguindo à risca as didascálias, que travavam o olhar dos encenadores. O que Lupa faz é integrá-las dentro da encenação e criar as suas, inventando uma nova liberdade dentro do texto".

"Beckett tinha medo dos seus contemporâneos", conta-nos Lupa. "E defendeu o seu texto o mais possível das intervenções dos encenadores. Achava, com razão, que não o iam perceber e, por isso, protegia-se dizendo exactamente como fazer os seus textos". O encenador polaco diz que descobriu em Beckett "uma linguagem inventada que era só um pretexto, um ponto de partida". "Ele não quer que façamos o que lá está, quer que o entendamos. E quando o entendemos, podemos fazer o que queremos". "Para Lupa", continua José Luiz Gómez, "o importante não é o simbolismo, mas o artefacto. O simbólico, que existe na arte desde sempre, é em Lupa uma coisa muito elaborada. Não é um olhar retórico nem inconsciente. É sempre uma possível interpretação de algo."

O cenário é disso melhor exemplo. Parece um "bunker" consumido pela humidade e Lupa confirma-o: "Havia um 'bunker' onde eu brincava quando era miúdo. Eu era o líder daquele grupo". Meter "Fim de Partida" num "bunker" permite uma proximidade cara a Lupa, tal como a cozinha de "As Presidentes", que recordava a cozinha onde viveu até aos 14 anos, numa escola abandonada que os seus pais adaptaram. São detalhes, diz, mas materializam a liberdade com que trabalha, em "campo aberto". Mesmo assim, tudo aqui surge do texto. "São textos que, não apenas pelo que dizem, mas também pelo modo como são feitos, permitem descobrir aspectos ocultos da realidade", sublinha Gómez.

Pura maldade

"Fim de Partida" ("Endgame", no título original) foi a quinta peça que o Prémio Nobel da Literatura escreveu, em 1957, e descrita friamente coloca-nos em frente a um homem, Hamm - "é mesmo um homem?, pergunta-se Lupa -, cego - "é mesmo cego?, insiste o encenador -, que manipula um outro homem, Clov, aprisionando-o num espaço irreconhecível. A dada altura surgem duas figuras, dois velhos, que, por maioria de razão, entendemos - "ou queremos entender", sublinha Lupa -, como os pais de Hamm. Como entram e saem daquela sala, só com uma janela, ninguém sabe. "O melhor teatro não é aquele que começa quando chegamos, é aquele que já lá está", diz Lupa. E essa experiência, "de presença e ausência do explicito", é aqui materializada pela transformação do papel de Clov num papel feminino. Por sugestão de José Luiz Gómez, Lupa atribuiu-o à actriz Susi Sánchez, porque "tinha a intuição de que seria o mais adequado": "Só depois é que comecei a reflectir sobre o impacto desta alteração". Explica: "Segundo a tradição hebraica, o mal é passado de pai para filho. Hamm carrega um segredo que não revela. Pode ser o pai daquela outra figura, que não sabe o que é, porque sempre aceitou como verdade o que Hamm lhe dizia. Hamm joga com isso, prendendo-o ali. Ele sabe que Clov é uma mulher, o público sabe, mas Clov não. Ser uma mulher altera a relação de forças num texto que fala de poder". A ideia de que possa também representar um novo início, através de um eventual filho, não desagrada a Lupa. "Mas isso é uma escolha que ela desconhece. Eles estão aprisionados."

Lupa fala ainda da falsidade que existe na peça. "Será Hamm mesmo cego ou um actor a fazer de cego? Clov duvida da honestidade de Hamm, mas não pode fazer nada", descreve. E será sob esse manto tenso que o espectador se vai instalar. "Eu diria que, numa primeira leitura, este é um texto de pura maldade, mas se há maldade é a mesma que cada um guarda em si mesmo. E mostra que o horror, a maldade e a violência são coisas comuns a todos os homens", analisa Goméz.

"A peça é feita para que o público a veja, não para que o público a ouça. Ouvir é o menos importante", diz-nos o encenador. Fala do momento em que Clov vai até à janela e, usando um monóculo, espreita e, em vez do mar, vê "pessoas enlouquecidas que se dirigem para aqui". Essas pessoas são o próprio público.

Lupa aceita a comparação desse momento da peça ao quadro "Las Meninas", de Velázquez, que retratou num jogo de espelhos, ao centro da pintura, os reis a observarem o pintor a retratar as filhas. "Sim, Beckett está a falar de quem os observa e está dentro do palco: os espectadores". José Luis Gómez diz também que "Beckett tenta fazê-lo com o mínimo de palavras possíveis, o que muito se adequa ao teatro de Lupa. Ele, tal como Samuel Beckett, põe em causa a paisagem verbal tradicional. Propõe que assistamos a algo que está em cena e que é muito  excepcional. E pede-o das formas menos evidentes", resume.

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