The Lady Killer

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Porque é que temos de olhar Cee Lo Green com admiração? Antes de tudo, porque tem o melhor falsete da actualidade, como foi revelado em larga escala, a todo e qualquer comum mortal, quando se juntou a Danger Mouse nos Gnarls Barkley (sim, os de "Crazy"), ou quando o ouvimos no espectacular sucesso viral de "Fuck you", canção de desaforo amoroso e dissimulado manifesto político (aquele "Fuck you" tem, de facto, as mais variadas utilizações).

Mas além disso, que não é pormenor de somenos, devemos respeitar e admirar muitíssimo Cee Lo Green por ser um tipo que é modesto o suficiente para saber que não é perfeito, mas tão certo das suas virtudes que nunca surge perante nós como menos que "o maior". O título do seu primeiro álbum a solo, "The Perfect Imperfections of Cee Lo Green", resume a atitude na perfeição. Sobre tudo isto, acrescente-se que Cee Lo Green é um homem com noção perfeita dos caminhos da história e de como se introduzir ele mesmo nessa linha genealógica. Ei-lo portanto chegado a 2010. Carreira iniciada nos Goodie Mob, de Atlanta, carreira a solo com dois álbuns no currículo (a "The Perfect Imperfections..." seguiu-se "Is The Soul Machine") e, depois deles, a fundação dos Gnarls Barkley. Chegado a 2010, dizíamos, o homem que há muito reclama o regresso da soul (no sentido de género e em leitura literal, "alma", portanto) à música negra americana, que considera refém do seu próprio sucesso e de um discurso autofágico sobre sinais exteriores de riqueza, assina uma pequena revolução em formato clássico. "I'm not above the law, and I'm certainly not lawless / but when it comes to ladies, I have a license to kill": esta é a introdução, em modo filme de gangster musicado por John Barry, e o primeiro sinal que este álbum repleto de sedução, com metais acariciando o cetim sonoro e num misto de pop açucarada Motown e o sentido lúdico do som de Philly, não é sedução normal. Se Marvin Gaye criou a sua insuperável ode ao amor carnal em "Let's Get It On", Cee Lo Green transforma o ressabiamento do homem de coração partido em motor criativo exclusivo (e há apaixonar-se outra vez e hão-de cair sobre as canções orquestrações opulentas, percussões de bamboleio elegante e Hammonds, muito órgão Hammond a iluminar o melhor falsete da actualidade). "Lady Killer" arranca com o riff de sintetizadores de "Bright lights bigger city", anunciando-se com a pompa que o leitor imaginará num cruzamento tão feliz quanto inesperado entre o Michael Jackson produzido por Quincy Jones e o "Jump" dos Van Halen. A partir daí, avança sem remorso pelo maravilhoso universo da subversão da "love song". Entregando-se aos anos míticos da soul como nunca antes - os 1960 e 1970 -, Cee Lo Green parece por vezes tropeçar no refrão demasiado certinho e no verso demasiado limpinho ("Satisfied" será o melhor exemplo da pior face do álbum), mas chegados ao fim, torna-se óbvio que esses momentos de felicidade alienada de "playlist" são indispensáveis ao equilíbrio do álbum. Porque, afinal, um homem não pode andar pela vida a largar "Fuck yous" (mesmo transformados em "Forget yous" na versão censurada) como um Al Green profano, nem pode passar os dias na neurose de "Bodies", essa grandiosa canção sonâmbula, negríssima, feita de sussurros, sintetizadores e trompete marchando entre lençóis. "The Lady Killer" será à primeira vista o álbum mais conservador de Cee Lo Green e uma sentida homenagem ao som de Philly, à Motown, à Bíblia da sedução escrita por gente como Bobby Womack ou Al Green. Isso é a fachada. Porque o que aqui interessa são os pequenos paus na engrenagem, a doce subversão que as perfeitas imperfeições de Cee Lo Green operam nestas canções.

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