Vidas imaginadas

A Boneca de Kokoschka é uma espécie de livro-jogo, recomendável pela sua feição imaginativa e lúdica, não obstante a quantidade de paixões tristes que conta.

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Afonso Cruz Rui Gaudencio

A boneca que dá título a este romance foi mandada construir pelo artista austríaco Oskar Kokoschka (1886-1980) depois do fim da sua relação com Alma Mahler. Era uma cópia minuciosa da mulher amada, em tamanho real, e que ele tratava como se fosse uma pessoa viva, numa atitude de Pigmalião amargurado. Um dia, enfureceu-se e destruiu-a. Esse episódio verdadeiro surge aqui como manifesto em favor das vidas inventadas, como aquelas que Afonso Cruz esboçou nos seus livros anteriores, nomeadamente em Enciclopédia da Estória Universal (2009), que ganhou o Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco.

Embora Enciclopédia não fosse exactamente um livro de contos, a sua brevidade e inventividade podia ser aproximada ao conto; mas A Boneca de Kokoschka adapta-se mal ao formato romance, embora mantenha intactas as virtudes da “Enciclopédia”. Afonso Cruz é realizador de filmes de animação, ilustrador, músico, agricultor, e os seus textos seguem sempre pelas mais diversas direcções. Neste livro, tanto invoca Pitágoras como parodia Chandler ou cita o Talmude. Mas a erudição vem sempre aliada a uma multiplicação de experiências de vida. Mesmo que sejam vidas imaginadas.

A princípio, o romance parece razoavelmente “realista”, a história de um homem que tem uma loja de pássaros, Bonifaz Vogel, de um rapaz judeu que se esconde na cave do comerciante, Isaac Dresner, e de uma judia com chagas que se junta àquela família improvisada, Tsilia Kacev. A acção passa-se em Dresden, arrasada pela aviação dos Aliados em Fevereiro de 1945.

Rapidamente percebemos, no entanto, que não haverá “acção”, e que mesmo o tema “Dresden” serve apenas como ícone da existência do mal no mundo. A verdade é que a narrativa avança, quase sempre em capítulos curtos, e já estamos com Mathias Popa, um escritor sem sucesso que um dia roubou um manuscrito a Thomas Mann e o publicou como se fosse seu. Segue-se, paginado quase como um livro dentro do livro, uma obra de Popa, acerca de família chamada Varga. E o último terço de A Boneca de Kokoschka é precisamente sobre a família Varga.

As personagens procuram-se umas às outras, e tudo acaba sempre nalguma forma de desencontro. Às vezes não é claro o que é real ou ficcionado, porque surgem várias profissões de fé na ficção como melhor amiga do homem. Nalguns casos, isso funciona, dentro da narrativa, como estratégia literária, igual à daquele editor que encomenda biografia imaginárias, depois encomenda livros fictícios dos biografados e até encomenda biografias dos biógrafos. Cruz faz a apologia da escrita labiríntica, em que realidade e ficção se confundem; mas também nos diz que a visão do mundo é uma acumulação de visões parciais sobrepostas. E algumas delas imaginadas.

O livro lê-se pois como uma sucessão de invenções ficcionais e ficcionadas, em registo geralmente poético ou irónico. È às vezes frustrante seguir os percursos cruzados ou interrompidos das personagens, tanto há caracterização psicológica como falta dela, mas nunca escasseiam boas ideias e observações insólitas. Há pessoas classificadas como notas musicais, a morte que é uma máquina que lê códigos de barras, uma prostituta que faz descontos a homens de esquerda. E perguntas. Quem sepultará o último homem? Porque não crescem árvores dentro dos pássaros? Porque é que uma frágil folha só se dobra no máximo quatro vezes?

A Boneca de Kokoschka é uma espécie de livro-jogo, recomendável pela sua feição imaginativa e lúdica, não obstante a quantidade de paixões tristes que conta. Talvez seja um romance falhado, mas sobretudo revela alguma inaptidão do género romanesco para este tipo de ficção borgesiana. Borges, já se sabe, nunca escreveu romances.

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