A ilusão da totalidade

Poderíamos entender o romance "O Dia dos Prodígios", assinado por Lídia Jorge e publicado em 1980, como uma alegórica leitura não apenas de um Portugal pré e pós-revolucionário, como efectivamente o é, mas como uma alegoria da própria revolução de Abril. O momento histórico seria aqui protagonizado por essa serpente de asas que mais ninguém daquela aldeia de Vilamaninhos perdida no interior algarvio viu. Uma serpente não de plumas, como era a de Jorge Luís Borges, porque sem hipótese de maravilhamento nem promessas, mas apenas geradora de mais incertezas, de novos medos, novos receios para uma população que nunca teve mais do que a si própria para se sustentar e muitas vezes não se bastou. Por isso, a promessa da serpente estaria desprovida do realismo mágico esperançoso da literatura sul-americana e (novamente) prisioneira da esperança ilusória característica da génese portuguesa.Se prosseguirmos nessa leitura, poderemos compreender melhor que o livro possa significar, para uma geração que viveu esses tempos, um estudo certeiro de um certo país e de uma certa portugalidade, onde o microcosmos é o todo e sugere essa "ilusão da totalidade", ideia inscrita por Jorge Listopad na recensão à obra. E, onde, por consequência, a frase-chave do romance "ninguém se liberta de nada se não quiser libertar-se", possa servir de grito de alerta para os perigos que, na História, tendem sempre a repetir-se, muitas vezes por inacção. Sobretudo porque é, também, um estudo sobre como se pode evoluir.

Hoje, porém, e por mais que os tempos peçam uma nova revolução (de valores, de costumes, de princípios), a distância que nos separa do texto e das suas intenções transforma-o numa peça documental, certamente não desprovida de interesse, mas carente de um outro olhar.

É esse, aliás, o maior desafio das obras de Lídia Jorge quando passadas para um outro filtro que não o do tempo de um romance. O facto de trabalharem a partir da moral (e daí o poder da alegoria como hipótese de interpretação da própria falsidade da moral), obriga a que o olhar seja menos antropológico e, porque teatral, atento ao modo como o tempo, no cruzamento da acção com a descrição, pode ajudar a reinscrever o texto.

A encenação de Cucha Carvalheiro sofre da mesma dificuldade de transposição que o filme "A Costa dos Murmúrios", de Margarida Cardoso, passado numa África portuguesa da década de sessenta, ou mesmo "A Maçon", ainda que escrita para teatro em 1997 e encenada por Filipe La Féria, inspirando-se na vida de Adelaide Cabete, uma das feministas da Primeira República. São obras que precisam de tempo porque, precisamente, falam, e são, sobre o tempo que as personagens criam.

A versão cénica, também assinada por Cucha Carvalheiro, procura o impossível, consciente disso mesmo. A transposição para o palco das múltiplas histórias, usando a ideia de narradores-personagens que balançam entre o dentro e o fora de cena, como se fossem espectadores e actores das suas próprias vidas, cria um artificioso fio narrativo que, na maior parte dos casos, acentua a fragmentação das histórias e não permite a linearidade que, apesar de tudo, se sente na história. A condensação do romance corre contra o tempo das próprias personagens e apenas quando os actores conseguem ultrapassar a figura poética e materializam as personagens se consegue entrar na construção em camadas e nada simplista desta narrativa. São esses os casos de Maria Emília Correia, Teresa Faria, Lucinda Loureiro, Elisa Lisboa e Ana Maria Filipe, que eclipsam o restante e muito desequilibrado elenco.

Não por acaso personagens femininas que, na sua oposição e complementaridade, são muito mais fortes individualmente que o conjunto das personagens masculinas, no que é, aliás, característica de uma escrita feminina que não se reduz enquanto "pólo de oposição ao masculino para se afirmar enquanto identidade outra", recusando assim a cristalização numa "imagem reificada do feminino e da subjectividade" (citações do programa).

Há, contudo, uma unidade proporcionada pelo olhar da encenadora, em muito ajudado por uma plasticidade cenográfica (Ana Vaz) que assume a impossibilidade multi-espacial do romance numa montagem também alegórica de um montado, no desenho de luz amplamente cinematográfico (João Paulo Xavier), na música pontualmente sublinhando a cena (Carlos Mendes) ou o movimento (Madalena Vitorino) que trabalha a partir da dificuldade de pertença do corpo e da mente a uma mesma pessoa.

Não é suficiente para que a peça possa ser resgatada do tempo e do modo em que foi escrita, mas é suficiente para ambicionar uma leitura do romance, assim seja reeditado.

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