Brasil: Reforma ou revolução?

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Obama disputou a Lula a sua popularidade mundial Foto: Chip Somodevilla/AFP

Lula seduziu os líderes mundiais e depois desiludiu-os. Para onde vai a política externa brasileira?

Moisés Naím, o antigo editor da Foreign Policy, chamou-lhe o "quebra-corações". Primeiro, seduziu os líderes ocidentais, depois desiludiu-os. Barack Obama chamou-lhe "o cara" e Lula da Silva tratou de interferir no Irão, fazendo-se o grande amigo de Ahmadinejad. Quando o Ocidente o saudou como o símbolo da entrada em cena de uma grande democracia, foi a Cuba dar mais um abraço a Fidel e afastar com um gesto de enfado a tragédia do dissidente Orlando Zapata, que morreu em greve de fome. Quando, no auge da crise financeira, Gordon Brown o visitou no Planalto para defender uma visão de um mundo global mais equilibrado, o Presidente embaraçou-o, responsabilizando os "homens louros de olhos azuis" pela Grande Recessão. O Brasil tornou-se num parceiro "difícil" na cena internacional, que não hesita em reivindicar o seu lugar à mesa dos grandes.

Como interpretar estes sinais? Eles animam hoje um intenso debate entre as elites brasileiras em torno de um tema que foi por muito tempo consensual. Para muitos analistas, as mudanças interpretadas pelo país de Lula explicam-se e justificam-se com as profundas transformações da ordem internacional que sobrevieram à guerra fria e à crise global. São o resultado natural de um país que deixou para trás a sua imagem de "país do samba e do futebol" para emergir na última década como uma grande potência económica. Ao lado da China ou da Índia. Para outros, trata-se de um desvio ideológico que nunca deveria ter tocado o Itamaraty e que Lula protagonizou num excesso de ambição que roçou por vezes a ingenuidade.

Num ponto, toda a gente parece estar de acordo. Os dois últimos presidentes, com os seus pontos de convergência e de descontinuidade, são um exemplo raro no Brasil que dificilmente se repetirá. Ambos tiveram grande visibilidade internacional e praticaram uma diplomacia presidencial que ajudou a conduzir o país para o seu novo estatuto internacional. FHC, "o rei-filósofo que colocou o B nos BRIC", como o descreveu o Financial Times. O Presidente-operário que pôs o mundo a olhar para o Brasil.

Duas visões e um dilema

Há hoje em Brasília duas visões distintas do caminho que o Brasil deve seguir para alcançar o seu novo estatuto internacional. Aquela que correspondeu ao tempo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e que coloca a tónica na relação com as potências do Norte que estão no centro do sistema internacional. Aquela que se foi forjando ao longo dos mandatos de Lula da Silva e que muda o eixo da política externa para as "alianças privilegiadas" com o "Sul" para reivindicar as reformas da ordem internacional que contemplem outra repartição do poder mundial, correspondente à nova repartição da riqueza.

Ambas são temperadas pela velha escola "realista" que predomina no Itamaraty. Ambas se expressam através das questões que hoje polarizam o debate. O Brasil fez bem no Irão. O Brasil fez mal no Irão. O Brasil ignora os direitos humanos na política externa. Todas as democracias tendem a ignorar os direitos humanos na sua política externa. Os EUA são um aliado fundamental na afirmação do Brasil na cena internacional. A agenda das relações entre os EUA e o Brasília será cada vez mais turbulenta.

Há um dilema que os dois últimos governos enfrentaram, dizia Mónica Herz, da Pontifícia Universidade Católica do Rio num debate organizado ainda em 2007 pela Brookings e pelo Woodrow Wilson Center, em Washington. "Como é que um país que está na periferia da distribuição global de poder, e que tenta alterar essa posição, reage e constrói um discurso?"

"A recente crise financeira tornou ainda mais claro que o mundo não pode continuar a ser governado por um clube de uma mão-cheia de países", escreveu na semana passado o chefe da diplomacia Celso Amorim. Mas isso não justifica tudo.

"É verdade que nos últimos oito anos assistimos a uma série de mudanças e de ajustes na política externa brasileira", admite Matias Spektor, jovem académico da Fundação Getúlio Vargas e um frequentador assíduo dos think-tanks americanos. Mas lembra que alguns dos temas que ganharam maior projecção não são necessariamente novos. Refere três: as alianças com outros grandes países emergentes; uma renovada crítica ao regime de não proliferação; mais ênfase na ideia de que é preciso democratizar as instâncias de governação mundial. Recusa a ideia de que haja um sentimento antiamericano nas elites e na opinião pública brasileira. Reconhece que, em todas estas frentes, há conflito de interesses potencial com os EUA. Explica a mudança de tom da diplomacia brasileira com o regresso de "uma velha crença" do Itamaraty, segundo a qual "diante dos EUA a melhor coisa a fazer é negociar duramente, mas sempre negociar". FHC negociou duramente com Clinton e foi o primeiro a criticar na ONU a forma como George W. Bush estava a colocar a "guerra contra o terror". A novidade é que o Brasil pode fazê-lo "porque as mudanças no sistema internacional dos últimos anos beneficiaram os países emergentes". Relativiza o Irão. "Houve mais um desencontro do que um confronto. Tudo o que aconteceu foi uma tentativa do Brasil e da Turquia de encontrar uma alternativa que não foi bem sucedida."

Amaury de Sousa, investigador do Cebri, Centro Brasileiro de Relações Internacionais, da velha guarda do pensamento estratégico brasileiro, não poupa as palavras para criticar a diplomacia de Lula. "O Brasil quer tornar-se um país desenvolvido e rico, em primeiro lugar. Outras questões de natureza geopolítica ou de excesso de ambição de protagonismo não devem pôr em causa este objectivo." E o facto relevante é que o crescimento das exportações do Brasil "se deveu muito mais ao período de grande prosperidade mundial dos últimos anos e ao dinamismo da economia chinesa do que a políticas internas". Apresenta as provas: o Brasil não assinou nenhum tratado comercial importante nos últimos dez anos. Falhou a ALCA (Área de Comércio Livre das Américas) - "desastroso porque podia ter no comércio externo norte-americano uma posição semelhante à da China". Falhou o tratado de comércio livre entre a UE e o Mercosul. Falhou a Ronda de Doha. "Perdemos isso por ideologia."

A segunda grande divergência no debate interno é a questão das alianças. A visão do investigador brasileiro coincide com a que dominou os anos de Fernando Henrique. "Se queremos ser um país do primeiro mundo, temos de nos relacionar, em primeiro lugar, com os países do primeiro mundo". "Deveríamos aprender com a China." Critica a forma como o Brasil quis interferir na questão iraniana: "Tornámo-nos um instrumento nas mãos da Turquia e do Irão. O Brasil se desmoralizou." Ser mais ambicioso na política internacional "é usar as oportunidades que o mundo oferece para nos tornarmos mais fortes. Não é ser contra os EUA ou a favor da China".

Os "revisionistas"

Miriam Saraiva, professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, põe alguma água na fervura de um debate que a campanha radicalizou. As duas visões da política externa brasileira correspondem, no fundo, a duas escolas tradicionais do pensamento diplomático brasileiro. Propõe uma classificação: os "institucionalistas pragmáticos", que dominaram no tempo do anterior Presidente; e os "autonomistas", que, com algumas nuances, predominaram na era de Lula. Ambas têm a sua origem com a redemocratização do país na década de 80, que coincidiu com o fim da guerra fria. Esta conjugação provocou uma espécie de "crise de ideias" no Itamaraty da qual resultaram "visões mais ligadas à política". "Não são antagónicas e correspondem mais a visões ideológicas do que geracionais."

A primeira corrente é mais favorável a "defender as regras da ordem internacional vigente, que é ocidental". Para a segunda, "a autonomia é a primeira, a segunda e a terceira prioridade". "São revisionistas. Não acham que [a actual ordem internacional] esteja a defender bem os interesses brasileiros." Querem mudar as estruturas do poder mundial. Aliam-se com quem partilha o mesmo objectivo.

O que talvez seja mais interessante é que esta corrente "autonomista" resulta de um "encontro" entre correntes tradicionalmente ligadas a sectores mais nacionalistas - "às vezes, a gente se pergunta se não se parece com a política do general Ernesto Geisel (74-79) ou João Goulart" - e o "internacionalismo de esquerda" que veio do PT.

"Lula traz para próximo de si essas figuras do PT [o caso mais paradigmático é o de Marco Aurélio Garcia, principal assessor diplomático], e acaba por ter as duas influências, essa e a do Itamaraty". A interacção entre ambas está na base da diplomacia presidencial. "É uma política realista, como em geral é a tradição brasileira: a cooperação Sul-Sul pertencia a esse universo dos "autonomistas", o PT trouxe uma conotação mais solidária de aproximação com países de esquerda e de tolerância com os seus desvios."

Mas a convicção da investigadora é que não é à influência do PT que se pode atribuir a responsabilidade pela iniciativa do Irão. Ela encontra a sua explicação numa das vertentes mais relevantes da cooperação Sul-Sul com países "semelhantes", como a China, a África do Sul, a Índia e até, a um outro nível, o próprio Irão. "Com esses parceiros, o Brasil procura duas coisas: intercâmbio tecnológico e concertação de posições nos fóruns multilaterais." O Irão interessa ao Brasil no intercâmbio tecnológico, incluindo na energia nuclear. A ousadia da iniciativa explica-se pela opção da diplomacia brasileira de passar a estar em todas as frentes: clima, OMC, G20, Médio Oriente, "incluindo meter o nariz nas questões de segurança". "Para não ser vista apenas como uma potência regional mas como uma global."

Dos direitos humanos

Ao contrário da China, o Brasil é uma democracia. Os episódios mais chocantes do protagonismo de Lula na arena internacional deveram-se à sua aparente indiferença a uma agenda dos direitos humanos. Matias Spketor não hesita um segundo: "Sempre que uma democracia faz política externa depara-se com esse dilema: até que ponto promover a democracia e até que ponto aceitar os países como são". Segue-se o rol de aliados do Ocidente que são verdadeiras ditaduras ou regimes pouco recomendáveis. "Nesse sentido, o Brasil não é diferente das outras e enfrenta o mesmo dilema." Miriam Saraiva lembra "o princípio de não ingerência" que informa a cooperação do Brasil com os outros parceiros emergentes. "Nela, não existe espaço para se meter na política interna do outro."

Para o Brasil trata-se de partilhar democraticamente o poder mundial, não de tornar o mundo mais democrático. "É uma posição pragmática", na melhor tradição do Itamaray. Mas outra grande divergência em relação a FHC. Os dois presidentes queriam integrar a América do Sul. Com um critério democrático, para o primeiro. Com um de poder para o segundo.

Voltamos ao dilema de Herz: onde está o Brasil? No Ocidente ou "no resto"?

"A identidade do Brasil, depois do fim da guerra fria, sempre se encontrou na margem entre o Ocidente e o resto. Claramente, o Brasil é um país ocidental, mas também, claramente, não é apenas ocidental", responde Spektor. No sentido em que "pretende fazer uma ponte entre tradições culturais e políticas do Ocidente e tradições não ocidentais".

"O que é importante é ver de que maneira os países emergentes olham para o sistema internacional. E tentar colocar-se nos sapatos deles."

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