Por delicadeza perdeu a vida

Pouco modernista na defesa de uma sinceridade por vezes ingénua, Pavia usou o recolhimento como mergulho íntimo

Ruy Belo e António Osório dedicaram-lhe elegias. Bénard, Bragança e Tamen participaram numa homenagem colectiva em "O Tempo e o Modo",cos mais diversos sectores da crítica, alguns incompatíveis entre si, escreveram palavras de apreço sobre o homem e a poesia. E, no entanto, Cristovam Pavia não figura no nosso cânone, talvez por excesso de delicadeza.

Pavia nasceu em 1933. Filho do poeta presencista Francisco Bugalho, tinha o mesmo nome e apelido, e usou um pseudónimo. O pai morreu precocemente, em 1949. Como precocemente se estreou Cristovam pelas revistas. Mais tarde, em 1959, a Moraes publica-lhe "35 Poemas", única colectânea editada em vida do autor.

Desajustado aos estudos, aos amores, à cidade, foi para o estrangeiro, tentou a psicoterapia, mas sem resultado. Em 1968, atirou-se para debaixo de um comboio.Não podemos ignorar a importância do convívio pessoal e da morte súbita, factores muitas vezes invocados e que emprestam uma aura à poesia de Pavia que às vezes vai bastante além do que encontramos nos poemas. Mas o livro de 1959 é muito significativo em termos da evolução da poesia portuguesa pós-presencista. A "geração de 50" debateu-se com as mais variadas influências e seguiu todo o tipo de caminhos. Basta dizer que Pavia publicou em revistas com poéticas tão diferentes como a "Távola Redonda" (neo-lirismo) e a "Árvore" (humanismo). "Poemas" recolhe o livro de 1959, uma secção de dispersos e outra de inéditos. O volume, com organização de Joana Morais Varela, retoma a compilação homónima editada em 1982 e acrescenta novos textos e uma nova disposição, mais notas e uma marginália crítica, num trabalho irrepreensível. O prefácio é de Fernando J. B. Martinho, que conhece como ninguém a poesia portuguesa da época. Martinho explica que Pavia, tal como outros pós-regianos, recuperou a penumbra existencial de Pessanha, a teatralidade mimada de Nobre e Sá-Carneiro, mais o Pessoa ortónimo, bem como os poetas brasileiros e Rilke. Ou seja, apesar de ter editado em 1959, Pavia é ainda de algum modo um simbolista tardio, incompletamente modernista, ligado a um confessionalismo adolescente e meditativo.

O sujeito poético de "35 poemas" é o "menino de pálpebras tombadas" que não quer sair da infância, embora já a tenha perdido em definitivo. A paisagem é a da planície alentejana, a quinta da família Bugalho em Castelo de Vide. Longe do bulício, o menino confessa, "sotto voce", sentimentos de orfandade, de asfixia, de mágoa, de amor angustiado. José Régio falou em "hermetismo", mas não é bem isso, é uma limpidez de registo com um tom sombrio e um discurso elíptico. Praticante daquele versilibrismo "sui generis" muito comum no pós-presencismo, Pavia tem mais noção musical do que rítmica, embora, diga-se, também demonstre uma apurada noção da importância da reticência e do silêncio. Pouco modernista na defesa de uma sinceridade por vezes ingénua, Pavia usa o recolhimento, e inclusive a religiosidade, como mergulho íntimo. E num poema em que fala de mergulhadores diz, ominosamente, que "só há saída pelo fundo". Essa fundura, esse abismo, esse "último reduto das coisas", trazem à poesia de Cristovam Pavia uma inquietação que ultrapassa a superfície frágil e discreta. É por isso que Pavia recorre com frequência à forma da oração, sempre à procura de uma paz que nunca chega: "Senhor nós devíamos / Lavar as nossas lágrimas / Para serem na terra / Água perdida e irreconhecível" (p. 52).

Alguns dos textos dispersos prolongam a sensação de cansaço, os prenúncios de morte, o idealismo triste, as "tonalidades vagas e angustiantes". E alguns poemas sugerem um hermetismo mais coeso: "Vinha o meu amor tão frágil / Dos profundos onde andava / Que a cada passo aumentava / O cuidado com que o tinha" (p. 111). Já os inéditos revelam outras tonalidades, surrealista, sarcástica, erótica até. Se o autor não tivesse morrido aos 35 anos, talvez a sua inquietação encontrasse novos soluções expressivas, e o "caso" humano fosse literariamente mais poderoso. Em todo o caso, por temperamento pessoal e poético, Pavia pertenceria sempre à linha discreta de um Sebastião da Gama ou de um Carlos Queiroz.

Casais Monteiro chamou "delicadeza" a essa poética, criticando aqueles que viam em tal delicadeza uma atitude pouco moderna. É verdade que delicadeza e modernismo não ligam bem, sobretudo quando a delicadeza significa biografismo sentimental. Mas também é verdade que Rimbaud, o absolutamente moderno, confessou, como Pavia: "por delicadeza / perdi a minha vida".

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