Uma peça chamada desejo

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A história parece ser conhecida de todos, mesmo os que nunca a leram, sobretudo porque no imaginário está implantada a memória do filme de Elia Kazan. Mas a intenção de Diogo Infante é a libertação do texto da carga simbólica do seu legado.

"É pena, sem dúvida, que uma parte tão grande do trabalho criativo esteja tão intensamente relacionada com a personalidade daquele que o produz". A frase, escrita por Tennessee Williams e incluída no volume que a Relógio d'Água publicou em 2009, e onde se encontra a versão de "Um Eléctrico chamado desejo", assinada por Helena Briga Nogueira, que o Teatro Nacional D. Maria II apresenta, dá bem conta do espírito que desde sempre envolveu as peças do norte-americano. "Eu quero continuar a falar convosco sobre aquilo por que vivemos e morremos. E quero fazê-lo sem reservas, intimamente, como se vos conhecesse melhor do que qualquer pessoa", escreveu.

Publicada em 1947 a peça surge na sequência de um exercício de um acto intitulado "Interior: Panic", apresentado anos antes, onde o autor já experimentava traçar o percurso de uma mulher fora do tempo, que representava a decadência de uma utopia face ao modernismo impresso pela reorganização social e económica da América da primeira metade do século XX.

A história parece ser conhecida de todos, mesmo os que nunca a leram, sobretudo porque no imaginário colectivo está implantada a memória do filme de Elia Kazan, de 1951. Uma mulher, Blanche DuBois, chega a Nova Orleães de visita à irmã, Stella, depois de ter perdido a herdade de Belle Reve, onde as duas passaram a infância. É uma beleza do sul que o sol consumiu. Uma traça e já não uma borboleta, que foge da luz.

Do confronto com o cunhado, um "bruto, um macaco", revelar-se-á um passado complexo, que a conduziu a um estado alucinatório. "Não quero realismo, quero magia", gritará. Expulsa da cidade, perseguida pelo passado, humilhada pelo cunhado, internada pela irmã "para sua própria protecção", Blanche segue, de braço dado a um médico, o estranho que ela confunde com um amante rico e de quem dependerá, como sempre dependeu da bondade de estranhos.

Espetar a bandeira da beleza

A violência da peça não é física, é psicológica. Está presente na sua linguagem, no desenho expressivo das personagens, organizadas como se estivessem num julgamento.

Diogo Infante, que assina esta encenação, assinala a evidência de "uma assembleia grega, onde há um esgrimir de argumentações que visam defender pontos de vista distintos". Mas o que o inquieta "é a incapacidade que as personagens têm de se

colocar no lugar do outro. É isso que me interessa retratar, porque acho que isso é intemporal. Há um momento em que deixamos de controlar o destino e são os outros que nos conduzem e, através das suas acções, produzem mudanças na nossa vida."

Quando a peça foi publicada, conta o dramaturgo Arthur Miller num ensaio publicado em 2004, "ecoava o destino dos marginais na sociedade americana e levantava a questão da justiça. E fazia-o a partir do seu interior".

"Williams não era poeticamente neutro, como se imaginava, e parte da imensa vaga de apreço de 'Eléctrico' deve-se ao tributo que fazia quer à realidade social, quer à sua personalidade poética", continua. "O que a peça fez foi espetar a bandeira da beleza nas margens do teatro comercial. A peça, mais do que qualquer outra peça dele antes ou depois, aproxima-se da tragédia e do seu negrume. Contudo, o real e o lírico são suavemente misturados e emergem numa voz unificada".

A peça, "um grito de dor", como lhe chamou Miller, é sobre cegos que conduzem cegos, como Blanche dirá a Stella, e sobre corpos moribundos, perdidos no calor doentio do sul dos Estados Unidos. Está lá tudo escrito: a força bruta de Stanley, os esquemas mentais (as suas protecções) de Blanche, a neutralidade de Stella, o desejo frustrado de Mitch... está lá tudo, "nessa linguagem que escorria da alma" (palavras de Arthur Miller). Williams explicará, numa entrevista que fez a si mesmo em 1957, que "nunca escreveu sobre nenhuma violência que não pudesse observar em si mesmo".

Tornou-se, por isso, um lugar comum dizer que as personagens, e em particular as femininas, continham traços biográficos de Williams. "Um Eléctrico...", faz de Blanche, ou no caso de Tennessee, um poço de contradições. Numa carta a Elia Kazan, que em 1948 dirigiu a peça na Broadway e em 1951 realizou o filme com Marlon Brando, Vivien Leigh, Kim Hunter e Karl Malden, Williams diz que "não há boas nem más pessoas. Algumas são melhores ou piores, mas todas são activadas por mal-entendidos ou malícia. Há uma cegueira que lhes invade os corações".

Diogo Infante diz que lhe "interessa encontrar um espaço orgânico onde as personagens se possam relevar na sua tridimensionalidade. Elas têm segredos, receios e isso interessa-me explorar. É algo que vai evoluindo narrativamente, elas olham-se de maneira diferente e olham para as outras diferentemente. Nisso, o nosso olhar sobre elas também se altera. O que me interessa nessa exposição é evitar sermos maniqueístas. Seria fácil fazer do Stanley um vilão. A forma como as personagens se expressam, e o modo como podemos condicionar essa ideia, através da acção, é algo ao qual fui particularmente atento. Eu consigo imaginar que há coisas com as quais não me revejo na Blanche e outras no Stanley. O que me interessa, no limite, é o que posso retirar daqui", diz Infante.

A peça, ao invés de apresentar uma moralidade, permite que o julgamento pode ser feito por quem assiste. Williams, nessa mesma carta a Kazan, pergunta o que deve o público sentir por Blanche: "Piedade, certamente. É uma tragédia com o objectivo clássico de produzir uma catarse de piedade e terror e, para que esse objectivo possa ser cumprido, a Blanche deve ser entendida e compreendida. Isto sem que se crie um desdém pela vilania de Stanley".

O modo como a peça foi sendo vista ao longo das décadas dá ideia da multiplicidade de interpretações para essa lógica de aparente neutralidade. André Previn fez, em 1998, uma ópera a partir do texto, prolongando a ideia de Williams de que "Um Eléctrico..." se constituía não a partir de monólogos ou solilóquios, "mas de árias, com longos e reflexivos voos de discurso poético". Previn diz mesmo que "vários actores que se distinguiram em peças de Williams falam da musicalidade das palavras e, muitas vezes, entoam em vez de recitarem as palavras".

Prolongando essa lógica, já este ano, o polaco Krzysztof Warlikowski apresentou, em Paris, "Un Tramway", livremente inspirado no texto de Williams e interpretado por Isabelle Huppert, onde era a música e a forte carga imagética do rosto da actriz que conduziam a acção.

Antes desta encenação no D. Maria, "Um Eléctrico..." teve outras duas apresentações em Portugal. A primeira, em 1963, no São Luiz, numa encenação de Henriette Morineau, com Mariana Rey Monteiro como protagonista, Varela Silva como Stanley, Lurdes

Norberto como Stella e José de Castro como Mitch. Lurdes Norberto não sabe explicar como é que uma peça com uma linguagem tão física conseguiu passar na censura. Sabe, contudo, que a versão utilizada, e traduzida por António Quadros, seguia o argumento do filme de Kazan. Nela, a explicação das razões do suicídio do primeiro marido de Blanche são elípticas. A homossexualidade não era bem vista na altura. E mesmo a violação de Blanche por Stanley é apenas sugerida. "Na altura não trabalhávamos as personagens com a densidade psicológica com que hoje se faz, mas havia um jogo entre nós que não fugia às temáticas da peça".

Acolhida com sucesso, a escolha do São Luiz prendia-se com um desejo de Mariana Rey Monteiro de "se libertar da mãe". "Ela sempre tinha feito papéis de grande dramatismo, mas ali foi uma surpresa para muitas pessoas". Para a actiz, que pertenceu ao elenco fixo da companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, o texto inscrevia-se numa "linha progressista que Amélia Rey Colaço desde sempre quisera imprimir, mas nem sempre a censura permitiu".

Foi preciso esperar por 1990 para que a peça voltasse a ser apresentada. Com encenação de João Mota, estreou com Manuela de Freitas como protagonista. Eugénia Vasques, no livro comemorativo dos 25 anos da companhia, escreveu que a entrada em cena desta peça, a par de outros autores anglo-saxónicos, permitiu "testar um estilo de encenação e interpretação que, de maneira mais clara, experimental, produziu um compromisso (ou o confronto?) entre um teatro ritual, pulsional e colectivista, e as exigências postas pela dinâmica individualizada (e até psicologista) emergente dos textos escolhidos.

Diogo Infante defende a ideia de que muitas pessoas pensam que conhecem a peça pelas imagens impressionistas do filme. Arthur Miller diria que se já estava tudo escrito, "foi quando Stanley conheceu o corpo de Marlon Brando que finalmente surgiu". A intenção do director do Teatro Nacional está num regresso ao primado do texto e à exposição das personalidades dos actores, num gesto de libertação do texto em relação à carga simbólica do seu legado. "Interessa-me criar um painel de uma sociedade que não tem necessariamente a ver com a nossa e um pretexto para mostrar actores em evolução".

Como, no fundo, pretendia Tennessee Williams.

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