Diário de uma ausência

Entre a catarse e a auto-flagelação, Alain Cavalier encena a ausência de uma mulher morta com um cerimonial destinado a fazê-la reaparecer, e faz desse projecto pessoal um projecto de cinema

Talvez alguns leitores se lembrem do último filme de Alain Cavalier (n. 1931) estreado em Portugal, ainda durante os anos 80: chamava-se "Thérèse", era uma belíssima, digamos que pós-bressoniana, evocação de Santa Teresinha de Lisieux, seguramente um dos grandes filmes religiosos - ou se preferirem, sobre o sentimento religioso - das últimas décadas.


Os anos passaram e Cavalier, que sendo etariamente próximo da geração da "nouvelle vague" só marginalmente teve a ver com ela, converteu-se ao registo diarístico, pessoal e intimista que acompanhou a (e foi possibilitado pela) evolução e generalização das pequenas câmaras vídeo cuja facilidade de uso convida a um emprego doméstico e a um cinema "feito à mão". É este caminho que Cavalier tem seguido nos últimos anos e nos últimos filmes, bem epitomizado no seu filme precedente, "Le Filmeur" (o "filmador" era, evidentemente, o próprio Cavalier), que alguns leitores igualmente conhecerão porque foi visto em Portugal, mesmo se não em sala comercial. Um paralelismo óbvio faz-se com os últimos filmes de Agnès Varda, "Os Respigadores" e "As Praias de Agnès": o mesmo jogo com o improviso ou com a sua aparência, o mesmo trabalho em torno de um cinema na primeira pessoa, a mesma propensão para o diário e para a revisão (auto-biográfica).

Mas onde Varda é luz e energia positiva, Cavalier é negrume e pulsão de morte, onde Varda é paz com a sua vida Cavalier é guerra com a sua memória, um turbilhão de coisas por resolver. Quase desconfortável exercício de auto-exposição, que Cavalier desarmadilha através de uma espécie de exagero caricatural - quando mostra o pé afligido por um ataque de gota ou quando filma, ao espelho, o seu próprio rosto cheio de equimoses depois de um trambolhão nas escadas do metro. Mas a gota ou as equimoses são meros apontamentos para reforçar o "género" diarístico ("Irène" também é o diário de Cavalier enquanto faz "Irène") e para convocar a degradação física como prenúncio da morte. "Irène" é um filme de morte - desde o primeiro plano - e é um filme para uma morta: Irene, que era a mulher de Cavalier quando morreu, em 1972, num acidente de automóvel possivelmente voluntário.

Reencontrando o diário pessoal que manteve durante o início da década de 70, e que agora lhe serve de "fil rouge", Cavalier procede a um exercício que oscila, indefnivelmente, entre a catarse e a auto-flagelação. Evoca o tempo de uma relação, através de lugares, objectos, recordações avulsas mas por vezes torrenciais. Evoca o seu lugar na relação, os seus sentimentos, os seus remorsos, assim como faz reviver nele próprio aqueles que ele imagina poderem ter sido os sentimentos de Irène. Renconstitui a biografia dela, entre a objectividade dos factos e a subjectividade da sua percepção. Conta a história de um amor, que talvez não esteja morto mas está, seguramente, "desencarnado". É por aí que "Irene" se torna um filme vivido numa espécie de desejo "mediúnico": condenado a filmar uma ausência (ou a filmar "a Ausência"), resta a Cavalier encená-la como um cerimonial destinado a fazer aparecer Irene, ou o seu espírito por ela. Mesmo sabendo - vide a pacificação, negra e dorida, do final - que tudo o que ele e o seu cinema podem é, justamente, transformar a Ausência num cerimonial. É aí que um projecto pessoal se converte num projecto de cinema. E todas essas coisas - a Ausência, a transformação, o cerimonial - são belíssimas.

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