Um dos mayores e magníficos templos de todo o reyno

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Documentos descobertos recentemente provam que dos 100 mil azulejos que existirão hoje no mosteiro haveria mais uns 40 mil pelo menos Daniel Rocha

A arquitectura quis impor um rei e uma ideologia, os azulejos dão-nos o maior conjunto barroco do mundo, a pintura esteve pouco presente, mas incluiu a obra portuguesa mais emblemática. São Vicente de Fora tem agora a sua história e a sua arte contada em livro. O P2 fez uma visita guiada com investigadores e ouviu mesmo histórias de conspiração

Era este, já no tempo em que foi reconstruído, "hum dos mayores e magnificos templos não só de todo o reyno mas da Europa". Hoje, é ainda ali que está o maior conjunto de azulejos barrocos do mundo.

O actual edifício não corresponde ao primeiro mosteiro. Foi Filipe II que, depois de conquistar Lisboa e se tornar também rei de Portugal, decidiu mandar fazer um novo mosteiro. A data escolhida para o início da obra não foi casual: 25 de Agosto de 1582, precisamente dois anos depois da entrada em Lisboa do exército espanhol e da proclamação de Filipe II como Filipe I de Portugal.

"O resultado preencheu deveras a ambição de Filipe II. Na cidade conquistada impunha-se um edifício triunfal", escreve Miguel Soromenho em Mosteiro de São Vicente de Fora - Arte e História. A obra, que acaba de ser publicada pelo Centro Cultural do Patriarcado de Lisboa, reúne pela primeira vez um conjunto de estudos pluridisciplinares sobre o monumento.

A reconstrução do mosteiro funcionou como um símbolo da afirmação do novo poder real. Não só pela data escolhida. São Vicente de Fora, que tinha sido mandado construir pelo fundador, D. Afonso Henriques, era agora refundado por aquele que pretendia também refundar o reino.

"O rei prometeu que iria residir o mais possível na corte de Lisboa", diz ao P2 Miguel Soromenho, que trabalha no Igespar (Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico). São Vicente de Fora foi a forma de dar um desses sinais - o outro foi a construção do Palácio da Ribeira. O investigador, que já escrevera várias vezes sobre São Vicente, confessa que só reparou na coincidência da data quando se tratou de escrever o estudo para esta obra.

O mosteiro, que iria servir de panteão real, "era uma forma de mostrar que alguns reis poderiam ficar em Lisboa" e que a cidade "continuaria a ter símbolos de capitalidade" - apesar de, ao mesmo tempo, estar já a ser construído o Escorial, em Madrid, observa Miguel Soromenho.

"Foi uma forma de colocar a arquitectura ao serviço da ideologia e da afirmação política", considera o investigador. Na sua modernidade, o projecto assumia uma linguagem mais internacional e mais cosmopolita, atribuía-se uma dimensão pouco habitual em Portugal.

Alguns pormenores do projecto - conduzido, em grande parte, por Baltasar Álvares - traduziam essa modernidade: a igreja com uma só nave, as capelas laterais que comunicam entre si, uma cúpula no cruzeiro, invulgar em Portugal e a fachada com duas torres - um elemento associado às catedrais. "Quando se retoma um modelo com este tipo de fachada, é para imitar a dignidade da sé episcopal", observa Miguel Soromenho.

Não é só a monumentalidade arquitectónica que impressiona. Está aqui também o maior conjunto barroco de azulejos do mundo. Quando se sobe a actual escadaria de acesso ao museu, deparamo-nos logo com a Sala da Portaria ou Capela do Patriarca (assim chamada por ter funcionado como tal, no século XIX).

Este último facto, aliás, foi responsável pela danificação de dois pedaços dos painéis: a colocação de uma teia (grade de madeira, de um lado a outro) no meio da sala, incrustada nas paredes, danificou os painéis - dois dos mais notáveis conjuntos representam as conquistas de Lisboa e Santarém. Nos restantes, alinham-se os rostos de reis portugueses, desde Afonso Henriques a D. Sebastião.

Uma grande oficina

"Não há aqui grande preocupação de fidelidade, a não ser talvez na reconstituição da tomada de Santarém", diz José Meco, historiador de arte e especialista em artes decorativas, nomeadamente em azulejaria. O autor dos painéis, Manoel dos Santos, sobre o qual não há muitos elementos, não tinha essa preocupação com o retrato fiel.

Mas tinha outras: a transparência do azul, o carácter muito lírico, os corpos retorcidos em esforço, nota José Meco.

Quando entramos no vasto claustro duplo, José Meco observa a grande capacidade de produção de azulejos que Portugal tinha no século XVIII, data em que foi executada a maior parte dos azulejos que aqui revestem a parede (1736-37). Produzia-se mais aqui do que em toda a Europa junta, diz. No país, a grande oficina era a do pintor Valentim de Almeida, muito activo na época joanina.

Os temas, no claustro, são muito variados. Essencialmente profanos: jardins, barcos, cenas galantes. Os enquadramentos são "espectaculares, como que teatralizados", com uma espécie de sanefas envolvendo cada uma das representações. Destaca-se, à esquerda da sacristia, uma cena de litoral, em claro-escuro, da autoria de Valentim de Almeida, o mesmo autor também do extraordinário conjunto de Louriçal do Campo.

Subimos já para a Escada do Cardeal, quando, na visita guiada para o P2, a historiadora Sandra Costa Saldanha, responsável do serviço de património no Patriarcado de Lisboa, dá uma boa notícia a José Meco: documentos descobertos há poucos dias, já com o livro a imprimir, mostram que a cerca inicial do convento era muito maior do que se pensava -

ou seja, em vez dos 100 mil azulejos que existirão hoje no mosteiro, haveria mais uns 40 mil pelo menos. Todos destruídos, imagina Sandra Saldanha. Uma das razões principais terá sido na altura da utilização de parte das instalações do mosteiro pelo então Liceu Gil Vicente.

A mesma razão foi a que levou à retirada de umas 40 estátuas dos jardins da cerca. Destas, Sandra Saldanha descobriu o rasto, para já, a uma meia dúzia que estão nos jardins do Palácio de Queluz. Foi após a instauração da República que as esculturas foram retiradas. Felizmente, neste caso, um documento de inventário registou o que havia e alguns dos destinos.

Sandra Saldanha está a aguardar que haja outras confirmações. Mas não achará estranho que algumas tenham ficado enterradas. É que, há 100 anos, a degradação da cerca do mosteiro e do seu muro era já de tal ordem que havia estátuas enterradas a meio corpo...

Voltemos aos azulejos que deixámos naquela que era a escadaria dos frades. Sem grandes motivos de destaque, pela decoração menos erudita, mas com um "encanto muito especial", com um "desenho expressivo" e de um azul mais puro. Há cenas de música com uma viola de gamba ou uma harpa, de pessoas disfarçadas de animais a caçar... Pelo estilo, o autor, anónimo, deve ter também peças suas no Palácio Fronteira.

Entre monges e pintor

No claustro, há zonas a precisar de intervenção. Mas todos os trabalhos foram interrompidos para restaurar a igreja, que há dois anos teve de ser fechada por ter vários problemas no telhado e nas paredes - houve blocos de gesso que caíram, inteiros. "A igreja foi um incidente fora da agenda, prioritário", diz Sandra Costa Saldanha. A conclusão das obras está para breve, a igreja deverá reabrir no final do Verão.

Pior estão os azulejos da parte superior do claustro. É o conjunto que mais precisa de cuidado. A partir de 1912 (até então, durante o século XIX, o mosteiro tinha sido o paço patriarcal), com a instalação do Liceu Gil Vicente e outras repartições públicas, muito do património deste sítio acabou destruído para abrir portas e janelas. Assim, desapareceu quase metade dos azulejos deste terraço superior. Contudo, em alguns casos, diz o investigador José Meco, é possível recuperar esse património.

Diferente é o caso dos painéis que representam as Fábulas de La Fontaine. Valem pela temática, mas que não têm grande importância artística.

Pelas vicissitudes que viveu - só a partir do século XVIII houve um programa de pintura para a igreja - o mosteiro nunca teve uma história de pintura assinalável. Nuno Saldanha, historiador e autor do artigo sobre a pintura no livro agora publicado, nota que subsistem, das originais, duas pinturas representando S. Vicente e S. Sebastião.

Ao facto também não é estranho que Vicente Baccarelli, autor do tecto com a Apoteose de Santo Agostinho, não se tenha entendido com os monges - ou estes com o pintor. A história terá sido de tal maneira que Baccarelli recorreu aos tribunais para tentar anular o contrato nos moldes exigidos pelo mosteiro, mas os frades deitaram abaixo os andaimes do pintor. O rei ainda interveio na contenda a favor de Baccarelli, mas o pintor decidiu regressar a Itália. Deixou, no entanto, em São Vicente, a única obra de autoria comprovada.

No século XIX, depois da extinção das ordens religiosas e da transformação do mosteiro em paço dos patriarcas, entram em São Vicente de Fora os bens dos palácios da Mitra Patriarcal (Junqueira, Marvila e Santo Antão do Tojal). De Marvila vieram 340 pinturas. Em 1835, cem delas saíram de São Vicente para o Museu das Janelas Verdes.

"Há museus que hoje não existiriam, se não fosse São Vicente", comenta Nuno Saldanha. O de Aveiro é um deles. Ao todo, 1500 peças saíram daqui para museus nacionais. Entre elas, estão a série do Apostolado, de Zurbarán, ou os Painéis de São Vicente, de Nuno Gonçalves, que hoje se podem ver no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa.

Estes últimos resultam de uma "história de conspiração": nos finais do século XIX, José de Figueiredo faz constar que os painéis tinham sido descobertos por Columbano - coisa impossível, diz Nuno Saldanha, pois Columbano não estava em Portugal nessa altura. No início do século XX, os painéis são pedidos ao patriarcado para restauro e para uma futura exposição. Com a instauração da República, não voltarão ao seu s? tio. Hoje, para ver a pintura de São Vicente temos que ir também às Janelas Verdes.

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