As estórias sem história de Brígida Mendes

Fotógrafa, Brígida Mendes tem-nos oferecido um corpo de trabalho centrado na reflexão sobre a artista e os seus duplos. Até bem recentemente, encenava situações complexas em que, juntamente com mulheres da sua família, recriava cenas paradigmáticas da reflexão sobre a imagem própria. Nessas fotografias, exclusivamente a preto e branco, o espectador confrontava-se com um apelo narrativo que nunca era totalmente explícito ou satisfeito: poderia eventualmente haver uma história para além das imagens, mas essa história nunca era contada, e o desejo de compreensão permanecia preso ao leque de referências eruditas ou da cultura popular que se estabeleciam visualmente, sem interrupção.Brígida Mendes, que desenvolvia então a sua actividade no Reino Unido e em Portugal, mudou-se recentemente para os Países Baixos.

A exposição que apresenta agora na Módulo é o resultado da residência que tem efectuado neste país, e revela algumas mudanças de base em relação à sua obra anterior: a cor foi introduzida, e a consideração do espaço de exposição provoca a realização de um ambiente pintado directamente na parede, sobre o qual se dispõem algumas das fotografias. Esse ambiente - uma paisagem quase ingénua - estabelece a ligação às séries de peças mais antigas através do tal apelo à narratividade que referimos. No caso presente, este materializa-se pela convocação do universo da ilustração infantil: a paisagem pintada na parede é ingénua, mas as figuras que povoam cada fotografia só aparentemente o são, exibindo uma perversidade que é sistematicamente ocultada no mundo adocicado das histórias destinadas a crianças.É que estas imagens não se destinam a crianças. Esculturas de animais que se comem uns aos outros, de crianças que defecam, de porcos que chafurdam na imundície, janelas que se acendem em caixas de luz através de detectores de movimento provêm de processos muito semelhantes aos que eram utilizados na antiga fotografia de estúdio de arte. Na altura (e hoje ainda existem sobreviventes desses antigos fotógrafos), existia uma relação de emulação entre fotografia e pintura, na sobrevivência do paradigma que fazia da representação a sua base e propósito. Longinquamente, a fotógrafa cita essa antiga relação, devolvendo ao espectador o lugar que já então era o seu: o lugar de quem decide sobre a similitude entre as duas disciplinas, na assunção da diferença que permanece sempre por eliminar.

Ao criar cenários e dispor esculturas que são depois fotografadas, Brígida Mendes efectua assim uma apropriação deste modelo, ao mesmo tempo que acentua a componente essencial que era outrora silenciada: a do papel do espectador. Na exposição, é o espectador que, movendo-se no espaço da galeria permite ou não que as caixas de luz sejam iluminadas, é a ele que cabe entusiasmar-se ou não pela aparente ingenuidade de cada cena, é a ele que compete, finalmente, resolver onde pára o entretenimento e começa a representação, tanto mais óbvia quanto se trata de fotografia. Numa das obras em exposição, a autora reproduziu um fragmento de um fresco italiano famoso por, justamente, ser amplamente reproduzido em diversos contextos. Ao mostrar unicamente a reprodução, está implicitamente a provar que cada imagem é, em si, uma ficção: sem aura, sem origem nem distância temporal, a imagem do fresco transformou-se no vestígio de uma estória, da verdade, como todas as outras fotografias de Brígida Mendes já o eram.

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