A solidão no osso

As solitárias personagens de Kjell Askildsen arrastam-se num mundo de sentimentos hibernados, como se diante delas só houvesse um imenso e silencioso abismo.

Poderiam ser várias as citações, retiradas desta colectânea de contos, capazes de ilustrar bem o singular universo literário, cínico e por vezes a tocar o humor absurdo, criado pelo norueguês Kjell Askildsen (n. 1929), considerado um dos mais importantes escritores nórdicos. Uma citação quase ao acaso: "Estamos completamente à mercê do nosso passado, não é? E nunca fomos nós que criámos o nosso próprio passado. Somos flechas disparadas do útero da nossa mãe, e aterramos num cemitério. Que importância tem então - no momento de aterrar - se voámos alto ou baixo? Ou se voámos para longe ou não, ou quantas pessoas magoámos pelo caminho?" (p. 86).

É neste mundo de sentimentos hibernados, de palavras frias e cortantes como o gelo, e de uma eficácia literária dolorosa, que se movem as muitas e solitárias personagens dos contos de "Um Repentino Pensamento Libertador". Com uma escrita de uma sobriedade que quase sempre deixa o leitor aturdido - "o que importa é conseguir dizer algo com poucas palavras" (p. 96) -, o escritor norueguês vem desde há quase seis décadas a desenvolver um trabalho literário profundo e corajoso sobre a inevitabilidade da solidão humana e do nosso irremediável desconsolo emocional. Como se diante de nós, logo ali a poucos passos, nada mais houvesse do que um imenso, silencioso e ameaçador abismo que inevitavelmente nos espera. "Quantas desilusões pouparíamos a nós próprios se deixássemos de ter esperança" (p. 193), diz uma das suas personagens, com aquela sabedoria de quem já viveu muito, tão sua característica.

A estreia literária de Kjell Askildsen aconteceu em 1953 com o volume de contos "A Partir de Agora Acompanho-te a Casa"; a colectânea acabada de publicar por cá - deixando assim o português de ser uma das poucas línguas europeias em que este autor nórdico estava ainda inédito - incluí o conto que dava título àquela primeira obra. O livro, que de imediato foi bem recebido pela crítica e pelos leitores, acabou alvo de controvérsia, pois a biblioteca pública da sua cidade natal, Mandal, proibiu-o por "obscenidade", e o seu próprio pai, membro do Parlamento, queimou-o em público. (Lido hoje, esse conto não passa de uma vulgar história de adolescentes.) Desde então, e apesar de não ser um escritor prolífico (escreveu pouco mais de uma dezena de livros, em que se incluem quatro "narrativas longas", ele não lhes chama "romance"), Askildsen tem vindo a construir uma obra sólida que já lhe valeu comparações a Beckett e a Carver; a este último sobretudo pelo estilo depurado, de frases concisas e simples, que parece desdenhar do uso de adjectivos, como se escrevesse no "osso da frase"."Um Repentino Pensamento Libertador", antologia organizada pelo próprio autor, reúne 13 contos escritos em várias épocas. Comum a todas as histórias é o mundo da dificuldade de comunicação, da fobia social, da dificuldade em conhecermos os outros, essencialmente os que nos são mais próximos, aqueles com quem vivemos. "Bem vistas as coisas, estamos condenados a atormentar-nos um ao outro" (p. 52), parece dizer a maioria das personagens (de quem Askildsen não faz descrições físicas, tão-pouco do cenário em que estas se movem: apenas o essencial). As relações familiares, sobretudo as parentais, ocupam também uma grande parte das histórias; desiluda-se quem espera encontrar aqui "conflito de gerações", o autor norueguês vai muito mais fundo e questiona o amor entre pais e filhos e vice-versa: "Diz-me uma coisa, pai, suponhamos que eu não era teu filho, suponhamos que era uma pessoa conhecida e que sabias sobre mim o mesmo que sabes agora, terias ficado assim tão contente por me voltares a ver, por me teres debaixo do teu tecto?" (p. 52). Kjell Askildsen pode facilmente deixar o leitor à beira de um estrebucho de desassossego. Ou de um ataque de nervos.Nesta colectânea há, pelo menos, uma obra-prima da narrativa breve, o conto "Últimas notas de Thomas F. para o público em geral" (o mais importante jornal norueguês elegeu esta narrativa como a melhor obra de ficção publicada na Noruega pelo menos no último quarto de século). O começo do conto, inesquecível, pode emparelhar com obras como "O Estrangeiro", de Camus, ou "A Família de Pascual Duarte", de Camilo José Cela: "O mundo já não é o que era. Por exemplo, agora vive-se mais tempo. Eu tenho uns bons oitenta e muitos anos e ainda não basta. Estou demasiado saudável, embora não tenha grandes razões para estar saudável. Mas a vida não me larga. Aquele que não tem nada por que viver, nada tem por que morrer. Talvez seja por isso." (p. 185)

Há nas histórias de Askildsen um silêncio doloroso, que tem dentro os nossos fantasmas interiores, e um tempo que parece não passar. Oxalá ele não passe para o escritor norueguês, para que nos possa dar ainda mais obras-primas.

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