O que fica do que passa

"Por Outras Palavras & mais crónicas de jornal" é uma antologia das crónicas de Manuel António Pina, organizada pelo seu amigo Sousa Dias. São 244 textos, publicados entre 1994 (data da excelente colectânea "O Anacronista") e 2009. A maioria das crónicas foi publicada no "Jornal de Notícias" (textos mais curtos, diários) e na revista "Visão" (textos mais longos, semanais). Em geral, as crónicas semanais respiram melhor, são mais elaboradas, menos presas à ditadura da actualidade. As peças mais curtas, em contrapartida, são comentários incisivos ao estado do mundo. Mas há em ambos os formatos a mesma reflexão sobre o efémero, ou sobre aquilo que a passagem do tempo torna efémero, dos grandes acontecimentos às emoções privadas. A crónica está sempre à beira de se tornar anacrónica, excepto para aqueles que sabem decantar o que fica daquilo que passa.

As crónicas de tema público aqui recolhidas são algo atípicas na imprensa portuguesa. Manuel António Pina é talvez o menos arrogante dos nossos colunistas, e a arrogância é a doença infantil dos fazedores de opinião. Pina mostra-se quase sempre tímido, afável, melancólico, quieto. Mesmo as suas indignações são geralmente irónicas, ou então recorrem à paródia swiftiana (há excepções: fica zangado com touradas, praxes académicas, com o higienismo, a obsessão sexual da Igreja, o filistinismo cultural e as asneiras gramaticais). A selecção de textos é talvez excessivamente extensa (são redundantes todas aqueles ataques ao "eduquês"), e Pina sofre a sina de todos os cronistas, que é ter de lidar com assuntos que envelhecem depressa. Por isso, ele sabe muitas vezes encontrar o essencial de uma situação, independentemente das circunstâncias datadas. O país, reconheça-se, é generoso em peripécias, da reprodução de Courbet apreendida em Braga às "greves de fome" de cinco horas. Várias crónicas são sobre os desvarios da alta finança. Pina cita muito a propósito o seu administrador de condomínio: "A situação, embora alarmante, não é preocupante". Especialmente agudas são as crónicas que sublinham que a crise, quando chega, não chega a todos.

Politicamente, as opiniões de Pina são de esquerda (exceptuando uma rara equanimidade face a Israel); uma esquerda independente e desiludida, que viveu 68 e 74 e viu as suas ilusões desfeitas, os seus heróis "corrompidos pela vida".O outro Pina, mais intimista, é aquele que revela a faceta do (óptimo) poeta que também é. São textos sobre a memória, sobre isso de sermos feitos de memórias, de palavras escassas mas justas, de uma incessante procura de sentido. Textos sobre os nomes dos amigos mortos nas agendas, sobre encontros falhados, flashes da infância, os gatos, a solidão dos livros. E, sempre, aquilo a que Pina chama o "mistério gratuito da poesia". Não apenas da poesia escrita, mas da experiência poética do mundo, na qual convivem Winne-the-Pooh e Ruy Belo, um pardal e um blogue, Bresson e George Best, o futebolista que disse: "Gastei muito dinheiro em álcool, miúdas e carros; o resto esbanjei-o".

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