Mais um dia na América

A América olhada pela lente de Laurie Anderson, numa das suas obras mais conseguidas de sempre

Tematicamente, é a América olhada ao microscópico. Sonoramente, são temas lentos, feitos de ambientes electrónicos, envolvimentos de violino e aquela forma particular de dizer as palavras, entre o falado e o cantado. Nenhum local que não tenha já visitado inúmeras vezes. Mas a verdade é que o novo álbum de Laurie Anderson - o seu primeiro na última década - é capaz de ser o seu melhor desde a estreia com "Big Science" (1982).

Essa extraordinária obra inaugural foi criada a partir de excertos das suas "performances" da época. Entre a ideia de concerto, a narração de histórias e a criação audiovisual, nas apresentações ao vivo dessa fase interrogava a sociedade do consumo ou as reacções pré-computador aos desenvolvimentos tecnológicos. Agora regressa com um disco também ele resultante de um espectáculo ("United States"), que passou há três anos por Lisboa e Braga, uma espécie de concerto-poema, onde encarnava uma personagem que evocava a autoridade dos homens, e funcionava como consciência da América conflituosa que se ergueu no pós-11 de Setembro.

A confiança cega na autoridade, a apetência dos meios de comunicação pelo espectáculo, o colapso financeiro ou a política externa da Administração Bush são reflectidos num registo que consegue ser tão cómico como trágico. Produzido pela própria e pelo marido Lou Reed, e contando com um naipe de importantes convidados (Antony, Hal Willner, Alva Noto, Steven Bernstein ou Four Tet), é uma obra de meditações envolvidas por uma certa aura de mistério, entrecortadas pela sua voz - angélica umas vezes, processada digitalmente noutros casos - e por ocasionais incursões pelo tecno e jazz, mas convergindo sobretudo para uma sonoridade electrónica expansiva, mas grave e melancólica.

O tema que domina o álbum é "Another day in América", longa reflexão de 11 minutos - feita de climas sombrios, orquestração dissonante e voz robotizada - que é, ao mesmo tempo, uma divagação pelo lixo e glória, actuação política precoce e hesitação cívica da sociedade americana, questionando "how do we begin again?". Anderson soube como recomeçar numa obra que exige total disponibilidade, mas da qual se sai satisfeito.

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